1975
Para Eli Kulicheski
Traffic
Tardes cinzentas, de chuva e fumaça,
Solidão e tristeza.
Na vitrola o Traffic, na cabeça um
emaranhado de ideias que nunca serão
nada mais que ideias.
Os amigos se foram, a lembrança ainda não,
Somente revolta e apatia num corpo que não
cansou, o disco acaba a vitrola o repete,
a indiferença pelo tempo e espaço recrudesce.
As tardes sempre foram cinzentas, a chuva a molhar
o asfalto e a fumaça dissipando-se no ar.
A tarde apaga-se, o som ainda é o Traffic,
a posição é a mesma, nada muda.
A noite cobre a cidade que esconde-se atrás
da escuridão e das conversas da madrugada,
a vida então começa, finalmente sinto-me bem,
mas tudo isso dura pouco, a escuridão não
permanece, a claridade chega e tudo continua.
Meu consolo é o velho som do Traffic.
Escrever sobre determinado ano de sua vida e ainda se arrogar ao direito de publicar para que outras pessoas leiam, pode soar algo de pretensioso, como certo momento de seu passado, pudesse interessar a alguém, além daqueles que dele fizeram parte.
Mais que um memorialista, mais que nostálgico, meu desejo é também de fazer com que meus eventuais leitores, também se voltem para a mesma época em que mergulho fundo nos recônditos da memória.
Vamos então para 1975, ano em que completei os emblemáticos 17 anos.
Passei os primeiros instantes desse ano na casa de minha então namorada, Sônia Carneiro. Parece que naqueles tempos namorávamos mais cedo, eu tinha apenas 16 anos e ela 14. Saí de sua casa logo depois da meia noite e fui para minha. Ela morava na Santos Dumont e eu na Barão do Cerro Azul. Eu costumava voltar pela Clotário Portugal, até a Ipiranga e aí entrava na Costa Carvalho, vindo até a Barão.
Naquela noite, bem em frente onde funcionava o Jornal Caiçara e onde hoje é o Bar Coroa, três sujeitos agrediam outro. Os agressores eu conhecia eram meus vizinhos e meus desafetos, o agredido eu jamais havia visto. Da esquina da Ipiranga eu já os interpelei pelo ato covarde, ao que eles perguntaram se eu também gostaria de apanhar. Respondi, experimentem. Imaginei que o agredido ia me ajudar e o embate não ficaria tão desigual. Que nada, quando eles vieram em minha direção, ele subiu em sua bicicleta e fugiu. É claro que não dei conta dos agressores e corri para minha casa, distante a menos de três quarteirões. Entrei correndo em casa e fui direto para o quarto de meu tio René, que eu sabia, não estaria em casa, mas sua carabina estava lá, me esperando, em cima do guarda roupa. Voltei para a rua, de arma na mão e confrontei os agressores, desafiando-os a tentarem me agredir novamente. Um deles, o mais valentão, veio em minha direção, não hesitei, atirei, mas como a distância não era tão pequena, felizmente errei. Instantaneamente acabou a coragem dos valentões, que saíram em desabalada carreira. Meus vizinhos e meus amigos Zilinho e Beto Rosa, ao ouvirem o tiro, saíram para ver o que estava havendo. Eu contei e eles me dissuadiram de ir atrás dos agressores.
No carnaval deste mesmo ano me envolvi em um acidente de proporções razoáveis. No domingo de carnaval, no final da tarde, emprestei o Fuscão de meu tio René e com meus amigos, Nivaldo Camargo, Paulo e Zinho Murara e Paulinho Rochembach, fomos passar em frente à casa de Sônia. Um quarteirão abaixo de sua casa fomos colhidos por um táxi em altíssima velocidade, sendo que nós também não estávamos nada devagar.
Resumo da Ópera Bufa, Zinho quebrou a clavícula, a porta ao meu lado abriu e eu fui jogado para fora do carro, quando Nivaldo, que ia na frente comigo, agarrou meu braço e me puxou de volta. Eu havia ficado com as pernas dentro do carro e com um dos braços agarrado ao volante e com a costas no chão, o que me propiciou escoriações leves e a camiseta da Som Livre, que havia ganhado de Nivaldo, toda rasgada. No afã de me ajudar, Nivaldo perdeu o ponto de apoio e bateu com a cabeça no retrovisor e no para brisa, sofrendo inúmeros cortes na testa. Paulo sofreu ferimentos leves nas pernas e Paulinho não se machucou.
No sábado anterior ao acidente, havíamos eu, Paulo e Zinho Murara e Edson Mendes, pela primeira vez, ido a uma noite de carnaval, que acabaria para nós, nessa primeira noite.
Em março, Paulo, Zinho e Marcos foram embora para Canoinhas e deixaram uma enorme lacuna, o que originou o triste poema acima. Paulo, Nivaldo e eu, formávamos um inseparável trio, com lugar para longas digressões filosóficas, sobre o amanhã, que sabíamos, chegaria cedo demais. E chegou.
Logo após a partida dos Murara, conheci José Renato Saldanha, que recolocaria o Traffic em nosso caminho e também Eli Kulicheski, uma de minhas primeiras amigas. Descolada, rock’n roll, Eli encarnava, pelo seu modo de vestir, pelos gostos e pelo modo de ser, a contestação e a transgressão, elementos presentes em parte da juventude daqueles tempos conturbados. José Renato Saldanha era a transgressão em pessoa. Mas isso e o resto de 1975, é o mote da próxima, ou próximas crônicas, afinal transpor em poucas palavras, um dos mais inusitados, conturbados e
Nostálgicos anos de sua juventude, não é tarefa fácil.
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