2020, o ano em que não pudemos nos distrair
Pesquisando sobre a palavra distrair encontrei várias definições e sentidos para este verbo em dicionários impressos e online. Entre as definições encontrei que distrair é esquecer ou se esquecer, afastar-se ou alhear-se de problemas e preocupações. Desviar atenção, desencaminhar da destinação inicial. Chamou-me a atenção uma definição: falta de atenção em relação ao mundo exterior. Especialmente esta me chamou a atenção porque fiz a pesquisa para falar justamente o contrário. Sem generalizações simplistas, mas atenta à ampla incidência deste fenômeno, neste texto quero falar sobre a falta de atenção em relação ao nosso mundo interior.
Mencionadas algumas definições do verbo distrair, incluo agora, algumas funções que este verbo pode adquirir. Buscar distração quanto ao que se passa em nosso interior pode ter a função de ocupar, divertir e também a de esquivar. Percebo que o uso do verbo distrair ou do substantivo distração muitas vezes refere-se à ocupação, ou seja, uma pessoa ocupa-se e mergulha sua atenção e seu fazer em alguma ação. Por vezes, esta ocupação tem a clara função de divertimento. Mas o foco deste pequeno artigo é a distração usada para o não pensar em preocupações e problemas, ou seja, o uso da distração como esquiva de uma situação psicológica difícil, desafiadora, aquela que incomoda, inquieta e tira o sono, o apetite, a vontade de enfrentar o dia, dificultando a possibilidade de saná-la. A solução de um problema só pode acontecer se ele for enfrentado e, justamente por ser enfrentado e não alijado sumariamente, é que pode ser solucionado. As situações não enfrentadas, permanecem latentes, atuando em nós sem nem notarmos objetivamente, mas estão lá. Ou seja, das coisas mais difíceis, desviamos a atenção e segue a vida, sem maiores entraves. Será?
Desviar a atenção, distrair, não soluciona o problema, apenas adia e, a cada adiamento, mais difícil vai ficando seu enfrentamento e, portanto, sua solução. Confunde-se frequentemente afastar do pensamento o problema com solucioná-lo. Tirar do pensamento não resulta em tirar da vida. Desviar o pensamento dificilmente é suficiente para a solução do material reprimido do qual se tenta esquivar. Assim, racionalmente pode-se desviar a atenção deste material, mas, emocionalmente, o sofrimento continua existindo, o que causa os desconfortos acima mencionados, de perda de sono e apetite ou aumento deles e baixa disposição. Quanto mais reprimimos algo que precisa de solução, mais disfunções vamos angariando para nossa vida, para nosso dia a dia. Por sorte, temos muitas distrações: trabalho, escola, vida social, igreja, a vida exterior, enfim. Assim vamos vivendo até que este problema não acessado e desviado por meio de atalhos e distrações se imponha e passe a bloquear alguma dimensão de nossa vida, pois a fuga da conscientização gera rigidez da percepção e do comportamento. Neste ponto já não dá mais para evitar olhar para ele. No entanto, não raro, já se reprimiu tanto e há tanto tempo que nem sabemos mais de onde ele vem, pois tornou-se camuflado por sintomas fisiológicos, físicos e o que era psicológico agora é físico e explícito. Distrações não mais resolvem.
O ano que ora finda, pelas razões que todos conhecemos, impôs um corte em muitas das distrações praticadas, mesmo inconscientemente, desde há muito. O isolamento social por muitos praticado, passadas as semanas e meses iniciais, nos colocou compulsoriamente diante de nós mesmos, de nossas relações próximas e de como lidamos ou não lidamos com elas. Desconforto, sofrimento, violência doméstica, sentimentos como tristeza, angústia, ansiedade pelo fim da pandemia e pela volta à vida anterior emergiram e, mais do que nunca, foi necessário o encontro consigo mesmo, tão pouco praticado no tempo das distrações ao alcance da mão. Distrações frequentemente eram utilizadas sempre que estes mesmos sentimentos se manifestavam anteriormente. Tornar-se consciente destas experiências agora presentes mostrou que as situações não resolvidas do passado emergiram e algo precisa ser feito.
Crescimento pessoal é o resultado quando este enfrentamento é feito genuinamente, ao se trabalhar a partir do presente, do momento em que as dificuldades emergem e, ampliando a consciência, permite novos olhares, novas formas de ver a si mesmo e a vida.
Os serviços de psicologia online e presenciais muito têm contribuído para que, qual técnicos de sofisticados aparelhos eletrônicos, psicólogos vêm sendo procurados por usuários atônitos e despreparados pelo histórico não uso de suas capacidades reflexivas. Cabe aqui o acolhimento e a escuta, o auxílio para realizarem a leitura de seu manual de instruções, que sempre esteve em suas mãos, mas que pelo trabalho e minúcias de suas orientações foi deixado de lado.
A “leitura do manual” se dá pela ajuda psicoterapêutica, quando os conteúdos emergem no aqui e agora e torna-se possível o acesso a hábitos e atitudes, bem como a modelos de comportamento previamente introjetados e engolidos inteiros. Ao serem trazidos à consciência podem agora ser mastigados, digeridos e assimilados, tornando-se, depois deste processo, recursos criativos em vez de impulsos destrutivos e limitantes. Após isso, a própria pessoa pode fazer o trabalho de “ler-se”, pois os sentimentos e sensações são os guias para o acesso ao aparelho psíquico, tal como as instruções de um manual são o acesso para o melhor uso de um aparelho eletrônico.
Que possamos, com confiança em nosso potencial, abrir nosso manual sempre que necessário e, em 2021 e para sempre, possamos também, depois desta aula forçada de auto enfrentamento que 2020 nos impôs, assumirmos cada vez mais os seres humanos que somos, responsabilizando-nos pelas escolhas cada vez mais conscientes que estamos sendo habilitados a fazer.
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