A febre do Oscar – parte 3
Um filme bom, do tipo que se sustenta em dois pilares principais: a liberdade de imprensa e a dificuldade de uma mulher de ter voz em meio a tantos homens. Poderia ter sido escrito só pra ressoar com toda a realidade dos Estado Unidos (e do mundo) da atualidade. Mas não. The Post é uma história real, de um pequeno jornal de Washington se tornando o segundo maior jornal dos EUA, sobre a mulher que conduziu o jornal a isto, sobre repórteres talentosos e dedicados, sobre ideais grandes demais para que a prisão ou a morte façam frente a eles. É bem bonito, especialmente porque a coisa aconteceu basicamente assim mesmo. É a história do sucesso do Washington Post, do triunfo da verdade, em suma, um desacato ou um manifesto anti-Trump.
Tem toda a questão dos jornalistas terem descoberto documentos secretos da CIA que provam a grande farsa que foi a Guerra do Vietnã, que comprovam a manipulação do governo e que a guerra foi se iniciando pelo menos uma década antes, no governo Eisenhower, coisa que hoje já se sabe e se liga a Indochina ao Vietnã, ainda que se considere duas guerras separadas. É um filme bem americano, fala de uma complicada situação política americana, de um momento cultural americano, da história, enfim, dos Estados Unidos. Faz eco em cada cena com os dias de hoje, ao abordar uma guerra entre a Casa Branca republicana e imprensa.
O que universaliza o tema é o triunfo de uma voz feminina frente às adversidades. Ao final do filme a esposa do personagem do Tom Hanks (interpretada pela subutilizada e genial Sara Paulson) dá um discurso que faz a coisa toda valer a pena, e não me interessa se é didático, talvez a gente precise de didatismo sobre misoginia e machismo. O breve discurso, ao se referir à personagem de Meryl Streep, mas também a qualquer mulher em uma situação em que se veja cercada de homens: “Quando te dizem diversas vezes que você não é bom suficiente, que sua opinião não importa tanto, quando eles só não te ignoram, mas pra eles, você nem está lá, quando essa tem sido sua realidade por tanto tempo, é difícil não se deixar pensar que é verdade.”
Dito isso, The Post é mais um filme consideravelmente inferior a Mudbound, que obteve indicação. O roteiro às vezes resvala no piegas e em piadas sem graça (poucas, ainda bem), a trilha sonora é o auge do clichê, mas o elenco entrega boas performances, com destaque para Streep, aí batendo seu próprio recorde de indicações ao Oscar (essa é a vigésima!!). E essas são as duas indicações do filme de Steven Spielberg, que ficou de fora da corrida pelo Oscar de melhor diretor.
E já que falamos da maior decepção do Oscar 2018, conseguindo bem menos indicações do que o esperado, vamos falar do campeão de indicações, a fábula de monstros, amor e perda de Guillermo Del Toro, A Forma da Água. Com 13 indicações, incluindo as principais categorias, deve levar apenas duas ou três estatuetas, com destaque para a de melhor direção, que já é certeira. Eu apostaria provavelmente em melhor trilha sonora e design de produção.
Se existe alguém que pode roubar o Oscar de melhor atriz de Frances McDormand, esse alguém é Sally Hawkins, em uma belíssima interpretação sem palavras. Hawkins interpreta a faxineira muda Elisa, que nos porões de uma instalação secreta do governo se apaixona por uma criatura marinha. Ela mora com seu melhor amigo, um gay de mais de sessenta anos que não consegue aceitar a própria calvície, interpretado por Richard Jenkins (indicado ao Oscar de ator coadjuvante), e encontra conforto na amiga e colega de trabalho Zelda (um trabalho comovente e engraçado de Octavia Spencer, que mais uma vez é indicada ao Oscar de coadjuvante). Ela se apaixona pelo monstro que na verdade é príncipe e tem que lidar com um humano, que na verdade é bem monstro, o agente da CIA interpretado por Michael Shannon.
A Forma da Água faz eco em vários sentidos com The Post, da época da guerra fria à xenofobia e paranóia anti-comunista. Mas as similaridades acabam aí, pois o primeiro é um filme de monstro, que também é um romance em que a criatura fica com a mocinha, como diria o diretor e roteirista Del Toro. Eu li por aí que é um filme sobre xenofobia e concordo. Mas também é um filme sobre tensões raciais e sobre relações inter-raciais. É um filme sobre ser gay ou negro na década de 60. Um filme sobre apartheids e, principalmente, sobre freaks. É um filme de monstro feito pra gente como eu – e talvez você – se identificar com o monstro. Tem um filme gay na lista de filmes indicados ao Oscar, mas eu acho que A Forma da Água faz um trabalho de representação ainda mais bonito. Me emociona profundamente saber que a criatura marinha foi feita como uma metáfora sobre mim. Eu não sei se A Forma da Água é capaz de emocionar tanto alguém que não esteja levemente à margem da normatividade, alguém que seja levemente freak. Eu imagino homens brancos achando o filme muito divertido e bem feito, mas incapazes de se identificar.
A verdade é que de todos os filme que vi até agora, A Forma da Água não é meu preferido ou o que julgo melhor cinema, mas definitivamente é o que mais me emociona.
Leave a comment