A língua e alíngua
A linguagem foi objeto de análise em todos os campos do saber, seja no emprego do signo mais adequado à dada realidade, seja na coerência exigida no método, ou no estudo dela mesma enquanto discurso. Toda doutrina, ciência, etc, possui uma linguagem própria.
Nós aprendemos, não há dúvida, a linguagem porque ela vem do Outro, e seu uso vai aprimorando sua exatidão, por assim dizer. Uma coisa é, no entanto, a linguagem, outra a língua. Costumamos reconhecer uma língua como idioma e então delimitar uma geografia, um grupo, onde determinados falantes reconhecem-se nela. Mas outra coisa ainda é alíngua. Se considerarmos que aprendemos a gramática de nossa língua pela alfabetização, isto é, quando juntamos definitivamente um signo a um som articulado, e que para que haja uma construção teórica complexa dessas sobre seu próprio objeto é necessário haver já um domínio sobre ele próprio – que, obviamente, para teorizar sobre a língua é necessário que já se fale – há aí uma escamoteação de uma gramática mais rudimentar, não formalizada, mas que já funciona no falante antes que ele possa debruçar-se enquanto uma consciência sobre sua língua. É justamente esta noção de alíngua o que nos autoriza a supor uma gramática própria ao inconsciente, e que encontra seu respaldo maior em Joyce. Lacan escreve alíngua numa única palavra para relevar sua função, qual seja, aquela anterior ao advento do símbolo como tal na estrutura do sujeito, ou melhor, aquele que permite fundá-lo (em outros termos, que designa o eu, pronome, imagem, imaginário, diferente de sujeito, efeito do simbólico). A noção sonora (contínua, as palavras não foram fragmentadas ainda) da língua materna, aquela falada pela função mãe (portanto, nada de biológico aqui) e que implica pela primeira vez o sujeito nessa língua (o bebê quer mamar?) e o abarca o corpo (pulsão) num universo discursivo (você quer esse brinquedo, apontando pra ele) faz o apelo retornar no futuro como articulado ao desejo no chamado (mesmo no choro) o bebê pede aquilo que lhe foi nomeado. Alíngua, nesse sentido, nada mais é que o inconsciente como efeito do significante: entre aquilo que é inaudível d’alíngua e da linguagem (posterior). Alíngua não sofre nenhum efeito da lógica racional, ou seja, ela não é a linguagem: onde o objeto ou bem está ou não está presente, n’alíngua ele está e não está, ao mesmo tempo. É o que permite que num lapso de sonho eu seja todos e nenhum, ontem e hoje, ou então que um ato falho ou chiste expresse numa palavra apenas tantas contraditórias ideias e intenções (você é um idiota porque eu gosto de você). Há, assim, uma distância tão necessária quanto lógica entre alíngua e a língua (idioma) como há entre esta última e a linguagem. Pois, justamente, há um tipo de gozo (aquele a que os letrados chamam fruição) inobtenível em outro lugar senão no significante. Experimentamos esse gozo tão somente na linguagem, mas justamente naquilo em que ela toca n’alíngua (sua comida está horrível, isto basta para derrubar um grande cozinheiro; ou então, você está gorda, por mais mentirosa que seja a afirmação) porque quando ela a faz, faz precisamente no objeto que não é apreensível na linguagem, aqui o desejo do Outro. Quer dizer que a linguagem empregada na ciência, ou melhor a lógica interna da ciência (leia-se realidade) não pode afirmar que há um bípede de quatro patas, posto que isso é impossível. É justamente o resto lógico (para usar uma expressão de Tom Zé referindo-se à tropicália), aquilo que no discurso não pode ser, e que portanto não pode existir na realidade (que é a realidade simbólica) o que constitui o real. A isto, o inconsciente responde ao modo da alíngua nas formas mais variadas e singulares. O exemplo de Joyce é tão extremo que nele não resta nada a ser interpretado (refiro-me ao Finnegans Wake). Portanto, não se trata de sentido, tampouco de fazer sentido, mas tão somente de gozo, e gozo alcançado se e somente se obtido n’alíngua, o que bem pode ser traduzido, para os outros, em linguagem, mas ela não é imprescindível. Aliás, talvez, somente por esta via se possa compreender algo mais em relação ao gozo estético da música, já que ela não significa absolutamente nada em matéria de linguagem ao ouvinte leigo. O entendimento racional (a lua brilha para que eu veja seus olhos) é dispensável a este gozo, mas isto não exclui uma lógica do impossível (real), furtada à linguagem.
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