A potência e a sedução das metáforas
Sem sombra de dúvidas, a língua é a manifestação mais ampla e acessível da nossa atividade mental. Sob o bojo das palavras há universos inteiros, pois cada palavra carrega uma sequência de traços de sentido que nos permitem acessar conhecimentos compartilhados e nomear a nós e ao mundo. Adélia Prado, que é notadamente melhor em metáforas, nos alerta: “A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda” . Mas, para ficar mais claro e ir alinhavando este texto, podemos pensar a língua como uma fresta por onde conseguimos espiar, ainda que com pouca luz, os mistérios do pensamento – os quais não pretendo dirimir (nem poderia). O que proponho neste texto é pensar a respeito do porder de um tipo de construção linguística mais recorrente e comum do que percebemos: a famigerada metáfora.
Há quem pense que as metáforas são elementos próprios da poesia e da literatura em geral, mas esta figura de linguagem rainha se faz presente em quase todas as nossas interações pela língua e não são de modo algum apenas ornamento, decoração ou recurso retórico. Em tempos de Coronavírus, as notícias tem sido frequentemente dissaborosas e preocupantes, mas vamos focar em um aspecto curioso de tais notícias: a frequente associação de palavras como combate, luta, derrotar, vencer, em expressões como: medidas de combate ao vírus; empresas estão lutando contra a expansão do vírus; vencer o vírus e milhares de outras combinações. Você provavelmente já usou alguma delas e, sim, embora sejam expressões bem corriqueiras, elas são construídas de maneira metafórica e sem muito esforço. E daí? como diriam os brutos e você sabe quem. E daí que este é um fenômeno bastante elucidativo sobre nosso funcionamento linguageiro.
Veja só, ao instaurarmos o vírus como um inimigo, as palavras que naturalmente aparecem são aquelas relacionadas a um território de guerra (combater, lutar, vencer), a metáfora se construiu por meio de uma série de associações que nosso sistema linguístico é capaz de processar de maneira muito natural e rápida. Nesse primeiro momento, podemos dizer que a metáfora é a associação de traços de sentido entre as palavras e entre as palavras e o mundo. Se eu disser que você é um sol, provavelmente ficará feliz porque os traços de sentido (traços semânticos) de sol são luminosidade, calor, brilho, indispensabilidade, ou seja, houve um processo de associação e de transferências de sentido.
Mas vamos pensar no poder das metáforas no nosso cérebro. Pesquisadores da área da Linguística vêm se preocupando em entender a relação entre linguagem e cognição, linguagem e pensamento e levantam uma questão, no mínimo, instigante: as metáforas podem moldar nosso pensamento? Segundo alguns estudos ainda não conclusivos, elas podem e fazem isso o tempo todo. Thibodeau e Boroditsky (2011) expuseram os participantes de uma pesquisa sobre enquadramentos metafóricos diferentes, como nos exemplares “O crime é um predador” e “O crime é um vírus”. Ao serem questionados o que se deve fazer com o crime, os participantes que leram a primeira frase (crime =predador) indicaram medidas punitivas, como prender os criminosos. Já os participantes que leram a segunda frase indicaram medidas preventivas, como palestras, informações e impedir a propagação. O que isso pode indicar: que a metáfora pode encaminhar o modo como percebemos o mundo e o interpretamos, de forma a organizar nosso pensamento de determinada maneira.
De posse de indicativos como este, linguistas também desenvolveram a Teoria da Metáfora Conceptual (TMC) que reivindicam as metáforas como modeladoras do nosso pensamento, pois são capazes de mediar nosso entendimento sobre as estruturas, sobre a cultura e as relações. Interessante é notar que as metáforas cotidianas estão associadas a coisas concretas. Quando dizemos que os preços despencaram, por exemplo, estamos associando noções espaciais (para baixo), note que a metáfora tende a ir do traço concreto para o mais abstrato. É importante de vez em quando prestarmos atenção a estas nuances da linguagem porque já sabemos que “a realidade é sempre mais ou menos do que esperamos”, como diria Pessoa, mas temos a sensação de que ao nomearmos o mundo estamos estabelecendo uma relação direta com a realidade… ledo engano, é a nossa percepção sobre o mundo que vem à baila e que poderia (?) ser pensada por outras ópticas, ou somos condenados à sua eterna sedução?
Mesmo usando as metáforas para argumentar, vender e falar naturalmente no dia a dia, talvez pensemos frequentemente nela como um recurso exclusivo da Literatura. Isso acontece porque é assim que aprendemos nos manuais escolares, infelizmente. Na literatura, a metáfora só é potente quando consegue reverter a nossa percepção sobre a realidade ou desestabilizar metáforas desgastadas. Todo mundo um dia já teve o “coração partido” (metáfora), seja lá qual for o motivo. Mas Fernando Pessoa, vem e escreve “Meu coração é um balde despejado”. É uma metáfora com outra potência, pois permite associar um outro traço: o do vazio. Despejar causa uma certa bagunça, frequentemente, o líquido respinga. Aí é que está o trunfo da poesia… apresentar um novo modo de perceber a realidade ou apenas desautomatizar o nosso costumeiro modo de dizer. Na poesia, ou na não-poesia, aí estão as metáforas, instaurando pesamentos e seduzindo nossos ouvidos. É inescapável.
Leave a comment