“Anos 10”. Quais marcas deixou?
A história é, frequentemente, lembrada e contada por décadas. Eu, por exemplo, nasci nos “anos 80”, iniciados com a crise do petróleo e terminados com a queda do muro de Berlim. Raul Seixas o imortalizou na música homônima, cantando “hei, anos 80/charrete que perdeu o condutor”. Meus pais são dos “anos 60”, os anos da ditadura, encerrados com o festival de Woodstock que moldou, de tantas formas, os “anos 70”. E assim vamos. Os “anos 2000” começaram com o 11 de setembro e terminaram com a crise econômica de 2008. No Brasil, começamos a última década comemorando o penta, ainda antes dos primeiros escândalos de corrupção da CBF, e terminamos como uma das grandes estrelas da arena internacional; os “filhos que deram certo”, como ouvi em Portugal, em 2009. Ou tentando explicar em Montevidéu, no mesmo ano, “como conseguimos passar ilesos da crise que derrubou todo o mundo”. O país decolava, como na clássica capa da revista inglesa The Economist, não por acaso do ano de 2009. Que ocorreu de lá para cá? Como serão lembrados, no futuro, estes “anos 10” que se encerrarão em alguns dias?
Claro que não pretendo escrever, aqui, uma crônica de toda a década. Não teria nem espaço para isso. Mas o jornal inglês The Guardian, em artigo do último dia 17, definiu os últimos dez anos com uma frase que, creio, bem representa o que se passou também no Brasil. Trata-se, nas palavras daquele periódico, da década que questionou e modificou tudo, mas não resolveu nada. Perfeito! O mundo, bem como o Brasil, está uma bagunça. Clima de faxina, mudança ou reforma, ficando a escolha ao gosto do freguês. Fico com a mudança, pois passei por uma recentemente. Móveis fora do lugar, livros espalhados, caixas semi-preenchidas e aquela poeira incômoda pairando no ar. Onde estão os talheres? Costumavam estar aqui. Não mais estão. E as chaves do carro? Onde coloquei as chaves do carro? A conta de luz? Preciso pagar a conta de luz, mas não sei onde está nessa bagunça. Ok, vou relaxar então. Mas a TV está lá naquele canto, atrás daquele monte de vinte caixas pesadas. E o livro que eu estava lendo está dentro de uma daquelas caixas, justamente a que está embaixo de todas as outras. Nada de relaxamento nesta casa, portanto. Vamos sair, respirar o ar puro de uma cachoeira, tomar um chopp. Mas para isso precisamos da chave do carro. Onde diabos está a chave do carro?
Os sonhos, objetivos e desejos da nação, tão claros naquele longínquo 2009, não mais servem ao país. Lembro claramente que falávamos em diminuir a desigualdade, acabar com a pobreza, incluir as minorias. Nada disso parece mais importar, pelo menos desde a segunda metade desta década que termina. Hoje tais temas são apenas exemplos do “maldito politicamente correto” que tomou conta do país, e que se quer extirpar. Você não gosta, ri ou se diverte com piadas racistas, homofóbicas ou misóginas? Petista! Vá para Cuba, então. Mas antes, por favor, assine aqui esta petição online contra o Netflix e o Porta dos Fundos, aqueles malditos que desrespeitaram nosso Senhor com suas piadas sem graça (concordo) e ofensivas. O presidente disse que índios são pesados em arrobas e não servem nem para reproduzir. “Cara, vai dizer que você não deu ao menos um sorrisinho quando ouviu isso pela primeira vez?” Apresentar Jesus como um adolescente que salva o mundo, mas é inseguro e gay, contudo, é extremamente ofensivo e vale seiscentas mil assinaturas. Assim terminam os “anos 10”, no Brasil.
Como pano de fundo de todo o drama, assistimos à retomada do nacionalismo como remédio para todos os males. Como bem escreveu o pensador tcheco Miroslav Hroch, por várias vezes citado pelo não menos eminente historiador Eric Hobsbawm, “quando as sociedades fracassam, o nacionalismo floresce”. Constatação cirúrgica, feita no contexto da desagregação do bloco soviético, no início dos “anos 90”. Quando desaparecem as certezas e valores até então ciosamente cultivados, quando o emprego falta, o dinheiro escasseia, as redes de bem-estar social são implodidas e as relações se rompem, a nação se torna o último refúgio ao qual o náufrago pode se apegar. Afinal, convenhamos, é reconfortante saber que, não importa o que aconteça, sempre será possível afirmar que se faz parte de um grupo que nos antecedeu e que sobreviverá a nós. Sem que nada tenha sido cobrado para isso. Foi preciso, apenas, nascer aqui, fato completamente aleatório e sobre o qual não tivemos qualquer poder de escolha ou decisão. Se nascemos, então somos parte. Para toda a vida. Ninguém poderá nos expulsar. Jamais. Teremos sempre um time que veste amarelo para torcer. Um idioma em comum. Todos os anos teremos carnaval. Iremos à igreja orar para Cristo (e apenas Cristo, afinal “o Brasil é um país laico, porém cristão”, como aprendemos nestes “anos 10”). Soltaremos rojões (incomodando aos nossos vizinhos) quando nosso time vencer algum campeonato, e também nas festas principais, no Natal, no ano-novo e em nosso aniversário. Trabalharemos muito, ganharemos pouco, mas não precisaremos mudar nada em nós mesmos, pois nossos problemas serão resolvidos por aqueles que elegeremos a cada dois anos, dos quais não mais nos lembraremos na próxima eleição.
Os cães ladram, o vento venta, os professores doutrinam e a caravana nacional passa. Ninguém poderá nos tirar isso. Pertencemos a algo. Somos brasileiros. Reclamamos, é verdade. Reclamamos muito. Mas somos brasileiros. E mais uma década será discutida em 2029. E em 2039… E este que escreve, com a máxima franqueza, não acredita que os termos serão muito diferentes dos atuais. Porque em um mundo no qual tudo muda, o tempo todo, e de modo cada vez mais veloz, é preciso que nos apeguemos a algo sólido, estável, eterno, imutável. E, para os que aqui nasceram, a nação é este “poste” salvador. Para nós, as mudanças se justificam se forem empreendidas para deixar igual. As novidades são desejadas apenas se, prontamente, puderem ser expostas em um museu, como cantou outro poeta nos idos “anos 80”. Eis a razão por que ouvimos canções de quarenta anos atrás e nos sentimos assombrosamente identificados. Não é que nada tenha mudado desde então. Não é que a história tenda se repetir, afinal ela não é um ser vivo dotado de livre arbítrio, mas apenas a crônica das decisões tomadas por seres vivos dotados de livre arbítrio. É que, quando se percebe que as coisas mudaram, se corre rapidamente para devolvê-las a seus lugares, sempre sob as buzinas e alaridos da revolução, do novo, do desejável. O caso é que, não importa o quanto as pessoas votem em quem promete a revolução dos trabalhadores (ideal tão antigo quanto os idos “anos 1800”, velho em vinte e uma décadas) ou em quem promete a volta dos “anos 60”, o tempo não volta, e mesmo a retomada do velho representa, efetivamente, o surgimento de algo novo.
Claro que este “novo” será arcaico, ultrapassado, virá com uma moderna pátina e um inigualável odor artificial sabor mofo aplicados na fábrica. Claro que não resolverá os novos problemas, pois se baseará em velhas, ultrapassadas e fracassadas fórmulas. Mas, ainda assim, será novo. Em um país que se recusa a envelhecer e, assim, amadurecer. Em uma sociedade que se recusa a olhar para si e, assim, se conhecer. Formada por pessoas que, em sua fuga desesperada para dentro de uma nação que não definem e na qual não pensam, se recusam a entrar em si mesmas buscando tornarem-se trabalhadores, religiosos, motoristas, vizinhos, cidadãos, enfim, melhores. “Quando a sociedade fracassa, o nacionalismo floresce”. Adoto este como o mote dos “anos 10” no Brasil. Férias, enfim! Até a volta, no alvorecer dos “anos 20”!
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