Apontamentos sobre Clarice Lispector em seus 100 anos
Texto dedicado ao amigo Roberto Cossan, cavalo de Clarice
De tudo o que foi de mais lindo escrito sobre a Clarice no dia de seu centenário (10 de dezembro de 2020), escrito com Clarice ou escrito para Clarice, cito o querido Roberto Correa dos Santos, aliás, já homenageado por Alberto Pucheu em uma linda postagem. Escreveu o Roberto: “Tenho um compromisso com Clarice de mais ainda no dia de seu aniversário aquietar-me. Em nome da sobriedade, ela me disse.” Faço das palavras de Roberto a minha aleluia, para Clarice a minha oração.
1 – Penso que o encantamento produzido pela escritura de Clarice Lispector advém muito mais de sua força do que de sua forma, o que coloca em questão a possibilidade de se mensurar com clareza a relação entre as características de sua obra – uma obra plural e enigmática -, e a magia que ela suscita nos leitores. O seu texto, que ora e outra nos convida à cumplicidade e até mesmo à coautoria no ato de leitura, é assim fruto do misterioso encontro entre leitor e escritor. Portanto, imagino que o encanto está mais na ligação, no calor, na energia trocada entre essas duas figuras por meio do pensamento, dos sentidos, do que em cada uma delas separadamente, o autor ou o leitor. O texto é esse elo e sua beleza é inexplicável. Certa vez, em uma de suas crônicas – reunidas posteriormente em “A Descoberta do Mundo -, a Clarice escreveu que “O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor”. Então, podemos até tentar apontar características que tornaram seus textos memoráveis: a sensibilidade, a poesia, o mergulho no mundo interior, a sondagem psicológica, mas nenhuma característica daria conta de explicar porque amamos tanto a Clarice. É um mistério. Está além da forma. E é por isso, penso eu, que o universo do neutro, do “it”, que aparece em “Água Viva”, do informe, da escrita capturando o pensamento à medida que ele nasce, do objeto pulsante, são elementos que apontam muito mais para o universo da força do que forma. Clarice é um corpo estranho no modernismo. O que põe em crise qualquer tentativa de comentário. Impossível explicar Clarice. É mais possível ler com ela, escrever com ela, conversar com ela. O memorável parece morar nesse encontro e não em numa característica específica do texto.
2 – A narrativa de Clarice parece sempre tentar alcançar aquilo que está atrás do pensamento. É claro que ela só vislumbra a isso pensando. O que não chega a ser uma contradição (isso aparece mais em “Água Viva”, mas se dissemina por toda a obra). Atrás do pensamento está Macabéa, a barata da “Paixão segundo GH”, o instante-já de “Água Viva”, os desejos de “Felicidade Clandestina”, tudo o que não se explica, como o enigma do Ovo, em “O Ovo e a Galinha”, só para citar alguns exemplos. Tentar alcançar o que está atrás do pensamento, capturar a vida se fazendo, o mundo no terceiro dia da criação, um ovo ainda não eclodido, é mais arte de bruxaria do que de técnica, apesar de que todo feitiço tem o seu jeito de fazer e Clarice sabia escrever, e sabia o que estava escrevendo. Sabia por em narrativa o caos e Éden que deveria ser o seu pensamento, seu amor pela vida e pela linguagem.
3 – Do ponto de vista patrimonial é lamentável aquela sujeira que amanheceu em torno de sua estátua no Leme há algumas semanas, como a mídia mostrou. É um desrespeito também à memória da escritora. Monumentos devotados a outros escritores já sofreram esse tipo de degradação, como é o caso da estátua de Carlos Drummond de Andrade, também no Rio de Janeiro. No entanto, a foto da imagem de Clarice na praia do Leme, que circulou na internet, revela uma cena que me pareceu bastante familiar. A escritora bela, altiva, séria em meio à sujeira do mundo. Não fecha os olhos para a realidade, pelo contrário, mergulha no mais íntimo e profundo da vida, mas transcende o cotidiano abjeto mirando fixamente o vazio. É assim que a estatua olha. Não conheci Clarice pessoalmente, mas imagino que se isso tivesse acontecido eu teria me sentido como que olhando de baixo para o alto, em reverência. José Castello contou que certa vez encontrou Clarice olhando demoradamente para uma vitrine. Ele se aproximou e viu que ela mirava manequins nus. A cena o impressionou. A escritora amava o vazio. Ele é o além/aqui/aquém da palavra. Do ponto de vista estético, a foto me pareceu bela. O lixo em volta só faz de aumentar o tamanho de Clarice. Há uma certa majestade poética no que foi capturado pela foto. Mas não defendo. Continua sendo ecologicamente incorreto.
4 – Não sei se é importante ler Clarice. Só sei que quem não ler estará perdendo uma coisa muito preciosa. É como passar pela vida sem sentir o gosto da maçã. Naturalmente, quem não experimentar não saberá o que perdeu. Talvez ler Clarice não seja importante. Mas se viver o é, e se a vida tem uma realidade amplificada pela sua literatura, se o mundo se amplia com suas palavras, ler Clarice passa a ser fundamental. Mas como a literatura é misteriosa, ela capta uns e não outros – e a própria Clarice falou sobre isso em sua última entrevista, para a TV Cultura – tudo passa a ser uma possibilidade. Ou nos apaixonamos por ela ou não ligamos. Clarice não é meio termo. Eu diria que Clarice é um perigo de beleza.
5 – Do ponto de vista literário, Clarice contribuiu imensamente para a cultura brasileira. Aprofundou uma vertente psicológica de nossa literatura, expandindo suas possibilidades, explorou uma dimensão pouco valorizada até então, fugindo do lugar comum da escrita regionalista, realista, predominante nos anos 30 e 40. Sem a Clarice nossa literatura seria mais pobre. Clarice é incrivelmente lida no exterior, projetando o Brasil em um cenário internacional. Mas tenho certeza de que ela não ligaria para isso. O que está em jogo em sua obra me parece ser muito mais profundo do que uma obra, um período, um país. É dimensão humana na sua mais profunda busca por uma experiência através da linguagem. É universal.
6 – O centenário da autora convida à leitura e releitura.
7 – Descobri Clarice muito tarde. Só fui lê-la na Faculdade. Comecei por “Hora da Estrela”. Impressionou-me deveras. Nunca havia lido nada semelhante. Impactou-me como Kafka, em “Metamorfose”, que conhecera antes, no Ensino Médio. Mas como sou daqueles que acreditam no tempo certo das coisas, fico feliz. Foi ela quem me encontrou. Clarice disse uma vez que não era ela quem escrevia os livros, eram os livros que a escreviam. Digo algo parecido. Não somos nós que procuramos os livros. São eles que nos procuram e nos leem. Se eu tivesse lido antes a Clarice, não a teria encontrado.
8 – Estudar literatura não pode estar desvinculado do encanto pela literatura. Portanto, a importância de estar permanentemente encantado com a literatura nos ajuda a viver melhor, como sugeriu Tzetan Todorov em “Literatura em Perigo”. É uma herança frágil a dessas palavras que nos ajudam a viver melhor. Temos que zelar por elas. Em um tempo no qual impera a violência, a alienação política, a valorização de bens materiais, a falta de empatia, a tristeza, o sentimento de decadência, acredito que a literatura nos convida a parar e olhar. Paramos e olhamos menos do que deveríamos. O Roland Barthes escreveu que o poder não quer que o homem olhe, deseja que o olhar do homem seja rápido e não pare nas coisas. E a literatura nos convida a parar. A literatura é essa máquina de produzir o vazio. É o nosso “it”, a nossa “Água Viva”. É um motivo que já basta para a cultivarmos com esmero. Ela quebra uma engrenagem, instaurando um contratempo no nosso tempo. Passamos a olhar as coisas fora do tempo, e por isso passamos a ver melhor. Saímos da moda e, portanto percebemos a moda. Está tudo lá no ensaio “O que é o Contemporâneo” de Giorgio Agamben, ou nos textos de Clarice. Acho que a boa literatura nos convida a sermos contemporâneos de nós mesmos. Mergulhar em uma subjetividade alheia, conhecer o universo dos outros é uma forma incrível de conhecermos melhor a nós mesmos. Encontrar Clarice é uma forma de encontrar em mim aquilo que no fundo sou.
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