Bola de Capotão, um monumento ao futebol que efetivamente importa
Tendo terminado de ler o recente livro publicado por Jair da Silva, Bola de Capotão, é inevitável não me deixar levar por memórias, indagações e pensamentos propostos por este magistral trabalho levado a efeito por um verdadeiro craque das letras, por todos conhecido como Kiko. De fato, trata-se de um livro delicioso! O desfilar de fatos relacionados à história de nosso futebol, o esmero com que os brasões destes esquadrões foram recriados, a narração de acontecimentos inusitados, as palavras daqueles que construíram domingos inesquecíveis nos campos do vale do Iguaçu, torna este um trabalho que, sem qualquer sombra de dúvidas, está destinado a converter-se em leitura obrigatória para todos aqueles que, nas gerações vindouras, se propuserem a escrever a história de nossos conterrâneos. Sim, de nossos conterrâneos, uma vez que o futebol é, para muitos dos brasileiros, o que a religião é para outros tantos povos: um elemento central na definição do caráter e da identidade nacionais.
O intervalo de tempo abrangido por esta obra engloba os anos entre 1921 e 1973. Meio século que compreende, não por acaso, os tempos áureos do esporte bretão em terras brasileiras. São cinco décadas que incluem, em termos nacionais, a entrada dos primeiros jogadores negros nos elencos de Bangu e Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, e que terminam na ressaca do tricampeonato mundial no México, a ser seguida da merecida derrota nos campos da Alemanha Ocidental, em 1974. No vale do Iguaçu, Kiko elegeu como marcos temporais a inauguração e extinção da Liga Esportiva Regional do Iguaçu – LERI, recuando alguns anos mais para tratar da fundação de clubes anteriores a esta federação. Como historiador também apaixonado por futebol, devo comentar que não poderia ter havido escolha mais feliz. Conscientemente ou não, Kiko terminou por abordar exatamente o período no qual o futebol teve maior importância entre nós, logrando, finalmente, jogar por terra o sentimento definido por Nélson Rodrigues como “síndrome de vira-latas”. São anos nos quais crianças não perdiam uma oportunidade sequer de jogar sua bolinha nos campos espalhados por nossas cidades ou, quando isso não era possível, nas ruas de asfalto balizadas com chinelos. Tempos nos quais o rádio de pilha se tornou instrumento pessoal obrigatório, pois que se constituía no único meio de ligação com os heróis fardados que a todos representavam nos estádios do país inteiro. Tempos nos quais a camisa amarela unia a todos em torno de um time que efetivamente representava a todos os brasileiros, orgulhando-os de suas conquistas mundo afora. Tempos nos quais o futebol, efetivamente, deixava de ser inglês e, nas palavras de um conhecido cronista europeu, adquiria “tempero brasileiro”. Como muito bem demonstrado por este livro, o movimento não passou despercebido ao vale do Iguaçu.
Neneca, Negão, Buiú, Pelé, Peixinho, Baleia, Mancha, Cacaio, Cafu, Alemão, Esquerdinha, Garrincha, Cafuné. Apenas alguns dos pomposos títulos que, desfilados por gramados distantes, tornavam-se familiares nas peladas de fim de semana das quais todos os meninos – e meninas – eram convidados a participar. Dos campos enlameados para o Morumbi, Maracanã, Pacaembu. Eis o sonho de toda criança que viveu estes anos sobre o solo brasileiro. Sou um pouco posterior à época descrita por Kiko. Meu desfile pelos campinhos de São José do Rio Preto, no estado de São Paulo, se deu entre o fim dos anos 1980 e início dos anos 1990. Anos fundamentais na formação de meu caráter, valores e princípios, necessário reconhecer. Porque, sim, os campinhos formavam caráter, ensinavam valores, exemplificavam princípios. Narro apenas uma passagem de minha “carreira futebolística” a título de exemplo para esta afirmação, na ânsia de emular, ainda que de modo muito imperfeito, ao autor do livro aqui comentado.
No alto de meus onze anos de idade, eu era um goleiro respeitado no bairro. Conhecido pela raça com que me entregava às pelejas, não fugia de divididas, bolas no alto, saídas aos pés dos atacantes que, desrespeitosos, ousavam adentrar minha área e, claro, dos eventuais sopapos e pontapés durante e ao final das partidas. Isso me tornava uma espécie de líder entre os colegas de equipe – ou, ao menos, eu assim imaginava. Mas eis que um dia, campo encharcado pela chuva, em uma partida acirrada com direito a cotoveladas, entradas duras e duas expulsões, uma para cada time, em lance pelo alto em minha área o juiz, nosso professor de Geografia na escola, assinalou pênalti. Era o fim do segundo tempo e, certamente, aquele trinar de apito indicava nossa inapelável derrota, uma vez que o marcador ainda permanecia no teimoso zero a zero. Reclamações acirradas que, em alguns casos, ultrapassou os limites do respeito a nosso mestre em sala de aula. Mais um cartão vermelho. Mais reclamações. Um dos nossos começou a chorar – éramos pré-adolescentes, afinal. Eu, isolado, permanecia embaixo dos paus, calado. Sabia que tinha feito o pênalti. Aquele atacante desavergonhado havia batido nos nossos o jogo inteiro. O escanteio representava o momento da vingança, e meu joelho em suas costas subiu certeiro, duro, dolorido, como seu contorcionismo no chão, naquele instante, bem demonstrava. Eu havia feito o pênalti, mas esperava que ninguém visse. O juiz, contudo, viu. E, seguro, marcou. Não havia que fazer. As reclamações continuavam até o momento em que – surpresa! – nosso outrora impassível professor travestido em árbitro vacilou. Não tinha mais certeza da infração. Pareceu hesitar. Andou para trás. Saiu do bolo e veio até mim, olhar súplice. “Vitor, confio em você, então vou perguntar: você fez pênalti com seu joelho nas costas do Magrelo (eis o apelido do meliante)?” E eu, todos os olhos postos em mim, não titubeei: “fiz sim, professor”. A correria, agora, foi em minha direção. Fui empurrado. Xingado. Creio ter tomado dois tapões na cabeça. E nosso zagueiro me disse algo como “agora você vai pegar esse pênalti, seu gordo imbecil, ou a gente vai te quebrar na pancada!” (tão carinhosas as palavras ditas durante uma partida de futebol, não?) Eu sabia que tinha prejudicado minha equipe ao assumir a responsabilidade pelo ato que cometi. Mas também me lembrava, naquele momento, de meus pais que sempre ensinaram que, não importava o que ocorresse, era preciso sempre se decidir por meus próprios valores e princípios. Eu não tinha outra alternativa. Precisava confirmar a opinião do juiz que, agradecido, confirmou a marcação da penalidade máxima. Passado o tumulto, lembro como se hoje fosse o momento no qual o Magrelo colocou a bola na marca e deu quatro passos para trás (nenhum a mais!). Meus colegas de time me fitavam com olhar de ódio. Para eles estava tudo acabado. Perderíamos a partida e eu apanharia. Isso estava estampado claramente em suas faces. Som de apito. Corrida do magrelo para a bola que, lépida, viajou em direção a meu canto direito. Exatamente meu lado favorito. Tão logo identifiquei a direção, saltei, braços esticados o máximo que eu conseguia. Senti o impacto na luva. Ouvi um barulho seco de metal. Não vi nada, água para todos os lados. Levantei a cabeça. A bola descansava, tranquila, na moita localizada atrás do gol. Eu havia defendido o pênalti! Todos corriam para mim, em festa. Eu havia enfrentado o mundo por meus princípios, e havia vencido. Gostei da sensação. Decidi que sempre que necessário, repetiria o ato. E aqui estou, novamente enfrentando um país inteiro em nome de meus princípios. Aquele pênalti se repete, hoje, em todos os dias de minha vida. Muitas bolas passam por mim e vão morrer no fundo das redes. Algumas poucas consigo defender, novamente. Minhas ações, contudo, permanecem inalteradas. O futebol é uma metáfora para a vida e, como tal, uma excelente escola para o mundo. Kiko nos lembra disso em suas páginas. A ele devo apenas minha gratidão por me permitir lembrar de momentos tão importantes de minha trajetória. Até a próxima!
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