Bonjour tristesse
M. Daluz Augusto (In Memoriam)
Ano VI – nº 69 – Julho/1959
Por um dos frios dias de junho, quando eu e mais alguns amigos tomávamos um pouco de sol na praça Cel. Amazonas, notamos que uma estranha figura de homem saía da Igreja e dirigia-se para nós. Chegou e, com bastante delicadeza puxou prosa com a turma que ali estava.
Era um caminhante. Depois de algumas palavras, disse-nos, ter 33 anos de idade, bem vividos e que há cinco anos caminhava pelo Brasil. Filho do Rio Grande do Sul, cedo ainda começou a sentir aquela ânsia de caminhar, de alargar seus horizontes, de fugir à vida rotineira, de conhecer novos costumes, de percorrer regiões sonhadas, e realizar desejos acalentados durante longos anos.
Foi assim pensando, que um dia ele se lançou em busca do desconhecido. Com apenas vinte anos, deixou a casa paterna, prometendo a si mesmo, conhecer muitos estados, pelo menos suas capitais. Respeitador, possuindo um grau bem elevado de cultura, sua conversa foi se alargando e despertando em todos, cada vez mais interesse. Cada um desejava saber qualquer coisa de muitos estados. E o simpático caminhante a todos respondia com grande segurança. Durante a conversação que com ele mantivemos, pudemos observar o seu desenvolvimento intelectual, de maneira que foi para nós, motivo de imensa satisfação tê-lo conhecido. Sua figura ficou gravada no escrínio de minhas recordações mais caras. Enquanto ele falava, eu o contemplava pensando: “Quanta diferença entre este andarilho e muitos granfinos das cidades, entre ele e muitos engravatados que não passam de sepulcros cariados”. Ali na minha frente estava andrajoso, barba por fazer, mas que alma bonita. Falou sobre música, discutiu política e declamou Bilac e Castro Alves, dizendo-se admirador de Cassiano Ricardo e Adalgiza Nery, citando um trecho de um poema do primeiro: “Era em São José dos Campos e quando caia a ponte/ eu passava o Parati/ numa vagarosa balsa/ como se dançasse valsa./ O horizonte estava perto/ A manhã não era falsa como a da cidade grande”. etc… Falou no Trovatore de Verdi e em Romeu e Julieta de Gounod. Ficamos todos ali boquiabertos, paralisados contemplando-o sem poder articular palavras.
Eu, inclusive, queria me convencer que aquilo era sonho, que essas coisas não acontecem em nossa cidade. Mas a verdade estava ali, concreta, palpável. Um caminhante sábio quase, cheio de filosofia e conceitos próprios, discutindo músicas clássicas e achando defeitos e falhas nas interpretações de Cauby.
Antes de partir, para o nosso espanto falou assim: “Amanhã quando o sol surgir dentre as brumas da madrugada, a estrela d’alva empalidecer e a luta cotidiana se renovar, eu já estarei longe daqui. O caminhante que conversa com vocês recomeçará a sua caminhada interrompida e com fé no Altíssimo e Jesus no coração que me impulsionara a prosseguir sempre para frente. (Fêz uma pausa e continuou) não sei se chegarei a satisfazer um dia o meu objetivo, não sei! O certo, é que minha alma se encherá de novas esperanças e novos alentos depois de cada tropeço e esboroamento dos meus sonhos! Só os fortes vencerão, (disse sorrindo). E eu graças a Deus me julgo um forte em Deus, pois que toda a minha fortaleza de espírito vem d’Ele. Esperar é um privilégio do homem, concedido por misericórdia divina, para a gente enfrentar com coragem os obstáculos da vida. A esperança é uma dádiva divina”. E fazendo uma ligeira curvatura e um movimento com o chapéu, disse, já se afastando do nosso grupo: “Sou um pobre sonhador que ando em busca de uma coisa que não sei… talvez seja Deus que minha alma busca… e sigo sonhando até que venha a morte… Bem-aventurados os que sonham, amam e esperam, porque um dia alcançarão a realidade”. E com um leve aceno de mão e um sorriso sincero nos lábios, disse adeus, deixando-nos mergulhados nos mais desencontrados pensamentos.
Mesmo depois da sua partida, a sua presença permaneceu entre nós, na lembrança dos sábios conceitos emitidos. Depois, aquela sensação de “presença” foi aos poucos desaparecendo como sua figura máscula e andrajosa desaparecia numa curva da estrada saliente… em seu lugar ficou um vazio estranho e profundo que finalmente desfez o grupo que antes tão animadamente conversava… E cada um seguiu pensativo o seu caminho…
Lulu Augusto
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