Cara gente branca e ainda os 13 porquês
Vamos seguindo pensando sobre as séries da Netflix, escondidas ou não tão escondidas no meio de milhares de opções. Nos últimos meses o canal de streaming teve algumas dezenas de estreias e reestreias. Voltaram novas temporadas de Unbreakable Kimmy Schimdt e de Grace and Frankie. Nas próximas semanas vamos falar sobre essas duas voltas. Adiantando que as comédias da Netflix sempre merecem estrelinhas, com um bônus pra Grace and Frankie, que não arreda o pé na hora de falar sobre sexualidade, drogas recreacionais e amizade entre pessoas mais velhas (o termo idosas definitivamente parece não se aplicar aqui). Na sequência também é preciso falar sobre a segunda temporada de The Get Down, uma das séries mais caras do serviço, com selo de qualidade Baz Luhrman.
Em breve também teremos o retorno de House of Cards, que foi mais ou menos o tema da coluna passada. E na metade de junho volta Orange is The New Black. Com tudo isso acaba ficando difícil não focar nas séries que retornam. Porém, a Netflix teve duas estreia um tanto quanto controversas, impossíveis de serem deixadas de lado. 13 Reasons Why e Dear White People. Nas últimas semanas falamos um pouquinho sobre a primeira. Ainda não havia terminado de assistir a temporada, que narrativamente é dolorosa e tematicamente é ainda pior. A relativização do abuso acontece de maneira tão natural que chega a assustar. Ok, tem o personagem mais uó de todos os tempos, que é um estuprador em série e a coisa toda. Mas o outros homens são tratados com empatia, principalmente o cúmplice do estupro, o Justin. Existe uma tentativa extremamente nociva de humanizá-lo, de fazer com que o público entenda porque ele faz as coisas que faz. Porque sim, ele também é vítima. Mas ao mesmo tempo é algoz. De duas meninas. Ou talvez mais. O background dos meninos abusadores das série é nebuloso.
Narrativamente a série só consegue ganhar alguma tração – pouca – a partir do episódio nove, que é quando o caldo temático entorna de vez. Falta responsabilidade ao falar de assuntos tão importantes quanto abuso, estupro e suicídio. Ainda mais quando se trata de temas tão pesados de maneira tão gráfica. Todo episódio é permeado por gatilhos, coisas que podem fazer com que pessoas que já foram vítimas de algumas dessas coisas horríveis acabem revivendo as experiências. A irresponsabilidade acontece na glamorização do suicídio, transformado num charmoso plano de vingança, executado com requintes de crueldade. A maneira como estupro e abusos são tratados é rasa. A série dá a entender que o que aquelas meninas sofrem é apenas bullying. Quando é algo muito pior. Não dá pra dizer que a coisa toda funciona como um alerta, porque não cola. Nada se salva. Mesmo.
Dear White People gerou um tipo de controvérsia diferente. Com centenas (??) de assinantes brancos do serviço de streaming boicotando e cancelando suas assinaturas. Simplesmente porque é uma série feita por negros, fazendo uma pesada crítica a nós, brancos. Que temos um bocado de culpa histórica no cartório. E culpa cotidiana também. Então, é tão hipócrita quanto a personagem principal um bando de gente branca reclamar disso aí e falar em racismo reverso. Amigos, de uma vez por todas, racismo reverso não existe. O racismo é uma construção histórica, e já é passada a hora de todos nós reconhecermos nossos privilégios e aceitar ouvir o que as pessoas que estão morrendo para que esses privilégios continuem existindo tem a dizer. Além do mais, a série é divertida, cheia de referencias pop. A narrativa vai se alternando em diversos pontos de vista, de diversos alunos negros de uma dessas universidades bem americanas. Os brancos estão lá como coadjuvantes, acessórios e vilões para que a história se desenvolva. E isso é tão importante, tão necessário, que mesmo que a série não fosse tão divertida quanto é, já mereceria a assistida. Claro, existem problemas. Enquanto se fala de racismo, acaba-se esquecendo de outras questões importantes, como gênero. Tem uma pegada na discussão de sexualidade, mas ainda assim, de um ponto de vista masculino. E é bem difícil aceitar as quatro ou cinco piadas com Bill Cosby já no primeiro episódio. Apesar disso, deixando de lado só um pouquinho essa necessidade de problematizar, a série toca em pontos importantes, do racismo branco, à hipocrisia ativista, ao poder institucional ineficaz. Mas faz isso de maneira inventiva e auto crítica, sendo em última análise mais entretenimento do que protesto. E isso também é importante. Afinal de contas é televisão, é entretenimento, precisa ser. Mas com um toque de ativismo, ainda que de maneira leve. A série é incrivelmente palatável. Não é genial, mas vale a pena.
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