Cara Gente Branca volume dois
A segunda temporada de Cara Gente Branca se perde um pouco, ao centrar o arco narrativo numa estória de sociedades secretas e no histórico para chegarmos até isso. E por vezes parece um esforço repetitivo e sem grandes efeitos. O que eu quero dizer com isso é que muda pouco o jogo. E muda pouco a sociedade e as múltiplas facetas do racismo estrutural. Mas quem sou eu pra dizer qualquer coisa? Por mais que eu tente e independentemente do nível de empatia que eu consiga atingir eu nunca vou saber o que é racismo, eu nunca vou senti-lo e como ele me beneficia indireta ou diretamente, com as minhas decisões ou não, justamente porque ele é estrutural, bem aí vem uma grande revelação que vocês já devem estar prevendo: eu sou racista. E não apenas eu, mas toda pessoa branca. É uma das questões mais interessantes levantadas pela série e uma das que melhor funciona.
Nós, os brancos, somos retratados como caricaturas ambulantes, quer sejamos de direita ou esquerda, até dos nossos hábitos de higiene eles fazem piada (boas piadas). E esse retrato se amplifica por duas vias: 1) os arquétipos muitos bem construídos dos personagens negros e negras, com todas suas idiossincrasias e suas diferenças nos detalhes; e 2) o personagem branco que se dá conta de seus privilégios e realiza vários vídeos curtos tentando entender se ele é racista e o seu próprio racismo. O interessante dessa construção, que muitos brancos chorões que não reconhecem seus privilégios vão chamar de racismo reverso – isso não existe, por favor não use essa expressão envergonhando a si mesmo e aos seus familiares – é que é exatamente assim que os personagens negros foram construídos no entretenimento nas últimas décadas. Isso quando deixaram de ser os iletrados ladrões de galinhas comedores de melancia. Não vamos fazer aqui a história de personagens negros e negras no cinema, mas se interessa eu sugiro ver qualquer filme da carreira do Spike Lee, em especial A Hora do Show. A história do cinema começa no racismo, começa exaltando a Ku Klux Klan. É só dar um google em DW Griffith.
O branco que entende seu racismo e mesmo assim tropeça mil vezes é um dos atores fixos do elenco, mas outra grande beleza de sua presença é que ele não só aparece pouco, como também serve como mecanismo narrativo para a personagem principal, sua namorada, uma mulher negra, Sam. Aliás, tem uma questão interessante com a Sam, por ser filha de mãe negra e pai branco, ela acaba reproduzindo um relacionamento parecido com o de seus pais. O pai de Sam aparece um pouco, mostrando que é possível talvez quem sabe existir mais de uma pessoa branca minimamente decente no mundo, o que de novo, é revigorante, já que os negros sempre são retratados assim na história do cinema. Na televisão menos, mas as coisas só melhoraram mesmo de uns tempos pra cá, com a tal da representatividade e a ascensão meteórica de Shonda Rhimes no início deste século, provavelmente o nome mais importante da televisão hoje. Mas voltando ao assunto, o pai de Sam também acaba se tornando questão chave no desenvolvimento da personagem e da trama. Com sua morte ela precisa evoluir em algumas questões sem deixar de lado a luta e também encontra um livro que ele deixou para ela, sobre as sociedades secretas da escola em que ela estuda o que leva ao desfecho aberto dessa segunda temporada.
Quando a estória construída está mais focada nas particularidades de cada personagem, em como cada um deles chegou ali, quando os universos se pulverizam e a série é tanto sobre Coco e Joelle, quanto sobre Sam. Quando é sobre a amizade entre elas. É nas bordas que Cara Gente Branca encontra suas potências reais. Tornando a experiência particular tão significativa quanto a experiência coletiva, ou mais, explicando a experiência coletiva de luta através da individualidade das personagens. É importante ver um elenco predominantemente negro, com personagens femininas fortes e uma protagonista mulher. É importante ver um elenco predominantemente negro multifacetado, tratando da experiência do racismo em primeiro plano, mas falando também sobre o que é ser mulher e o que é ser gay. Quando foca em suas personagens e se esmera em construir e aprofundá-las é que a série fica melhor de assistir e a gente, como gente branca que somos, consegue entender melhor o quanto o racismo é estrutural e o quanto nos privilegiamos disso.
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