Contradições de uma democracia nova, ou Bloco de notas para uma política que vem
(Em 1967, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade realizou o filme “Contradições de uma Cidade Nova”, para atender a uma encomenda da Olivetti. O documentário começa com uma apresentação da bela cidade de Brasília, com suas superquadras e edificações suntuosas e modernistas, para logo depois retratar as contradições desse progresso projetado, enfocando operários e imigrantes vivendo na periferia da Capital Nacional em condições de grande penúria. O filme foi rejeitado pela empresa para não constranger o governo militar. Salvou-se uma cópia da obra e, assim, ela sobreviveu. Dessa película, inspiro-me para o título do texto: “Contradições de uma democracia nova”.
Em tempos sombrios do presente, cabe-nos perguntar se a democracia é um bem que ainda estamos lutando para conquistar ou se é uma conquista que corremos o risco de perder antes mesmo de sua solidificação. Em lembranças remotas da minha infância, vejo-me deitado no chão da sala assistindo às exéquias do senhor Tancredo Neves. Pela TV, a multidão, com lágrimas fúnebres, parecia dividida entre o entusiasmo da redemocratização e o luto pela perda de um de seus baluartes. A democracia renascia a partir do luto e da luta, do sentimento de perda e da esperança de novos tempos, tempos de Henfil, Ulysses Guimarães, Fafá de Belém, pomba branca e tantos mais. Tempos das Diretas Já. Hoje, depois de apenas 30 anos de redemocratização, surpreende-me a quantidade de cidadãos defendendo um Estado de Exceção, aquela realidade obscura que só no século XX gerou no Brasil duas grandes ditaduras, a de Getúlio Vargas e a Militar de 64. Estamos vivendo em um estado de excepcionalidades que, além de enfraquecer a democracia, estimula uma desorientação coletiva que, por sua vez, desencadeia uma despolitização assustadora. Condena-se nas mídias antes de se condenar no tribunal, usa-se da liberdade democrática do direito de livre expressão para condenar o direito de expressão do outro. Agride-se dentro e fora da Rede Social. Legitima-se a violência com mais violência. Fecham-se os olhos para os índios, como se fossem eles os invasores da terra. Diminui-se toda e qualquer minoria. Elogia-se a falta de cultura como instrumento para uma boa governabilidade. Olvida-se dos Direitos Humanos. Diminui-se a figura da mulher e exalta-se a guerra, como fez Marinetti no “Manifesto Futurista” (fascista por excelência), em 1909: “Nós queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo – o militarismo, o patriotismo, o gesto destrutor das anarquias, as belas ideias que matam, e o menosprezo à mulher”. Que atual!
Em um texto destinado a pensar a política, o filósofo italiano Giorgio Agamben observa que o termo “democracia” é falseado por uma ambiguidade que condena ao mal-entendido os que o empregam. O autor pergunta sobre o que falamos quando falamos de democracia? De uma forma de constituição do corpo político ou de uma técnica de governo? O termo, segundo ele, remete tanto à conceitualidade do direito público quanto à prática administrativa. Para Agamben, no discurso político contemporâneo, o termo se refere quase sempre a uma técnica de governo. As raízes dessa dualidade jurídico-política e econômico-administrativa se encontram na própria história de nossa cultura ocidental. O filósofo pergunta ainda se não seria essa ambigüidade uma ficção, “destinada a dissimular o fato de que o centro de uma máquina é vazio, de que não há, entre os dois elementos e as duas racionalidades, nenhuma articulação possível, e de que é dessa desarticulação, justamente, que se trata de fazer emergir esse ingovernável, que é ao mesmo tempo a fonte e o ponto de fuga de toda política”. Agamben encerra o texto dizendo que enquanto o pensamento não resolver esse nó, “qualquer discussão a respeito de democracia – como forma de constituição e como técnica de governo – corre o risco de cair no palavrório”. Uma não pode existir sem a outra, assim como qualquer ideia de liberdade e conquistas (para não falar em progresso, essa palavra tão famigerada) só pode existir de fato dentro de um Estado de Direito, de uma Democracia, e não em um Estado de Exceção, este que vem sendo elogiado, sem qualquer constrangimento, por alguns candidatos.
Leave a comment