Crônica sobre mudanças, vampiro, saúde e educação
Sou historiador, posso afirmar com certeza, há pelo menos doze anos. Digo “pelo menos” porque, embora tendo me formado no ofício, com graduação em bacharelado e em licenciatura, em 2004, na prática realizo pesquisas na área desde 2002, ano da obtenção de minha primeira bolsa para realização de trabalho científico. Mas posso recuar ainda mais, ao ano 2000, para referir minha entrada na faculdade de História, na Universidade de São Paulo. Ou, sendo benévolo comigo mesmo, pelo menos até 1998, quando já apaixonado pela disciplina me punha a ler textos e livros de Eric Hobsbawm e Michel Foucault na tentativa de entender uma sociedade que já então me parecia estranha, ilógica, no limite incompreensível. Desde então me acostumei às mudanças. História é mudança, nada do que hoje é o será amanhã. De fato, eu diria que a essência do conhecimento histórico se baseia no estudo das mudanças, de suas causas e consequências. Afinal, se o mundo fosse estático não teria porque estudar sua trajetória ao longo do tempo. Não existe geologia da semana passada, ou do último século, exatamente porque no último século a camada rochosa do planeta pouco se modificou. Existe geologia das eras, dos milênios, que é a escala de tempo no qual as alterações da crosta se processaram. Nossa região, por exemplo, há muitos séculos fez parte de um enorme deserto, batizado pelos especialistas Botucatu. Um deserto que cobria as terras dos atuais sul e sudeste do país e tornava o clima, a vegetação, a fauna profundamente diferentes.
Como historiador, gosto também das mudanças geológicas. Afinal foi desde o fim do deserto e sua lenta e gradual transformação em floresta de araucária (hoje profundamente ameaçada após mais um processo de mudança, este provocado por humanos) que as primeiras sociedades se estabeleceram nas margens do Iguaçu, primeiro de modo nômade, depois de modo perene. As mudanças definem o que somos, onde estamos, onde iremos estar. Definem, em uma palavra, tudo. É próprio do homem sábio, já disse certa vez um homem certamente muito sábio, mudar de opinião. Revisitar seus pensamentos. Reelaborar sua mente. Mudanças são, portanto, essencialmente boas, ainda que em um primeiro momento pareçam más. Crer nisto é próprio de um modo positivo de enxergar nossa própria caminhada sobre o mundo. Um positivismo que, confesso, não me acompanha sempre, muito pelo contrário. Mas o qual gosto de cultivar, na esperança (talvez vã) de que um dia eu possa professá-lo com mais frequência e, mesmo, certeza.
Mas, ainda que necessárias, ainda que eu esteja acostumado com elas, que eu as estude todos os dias, que as ensine, que as busque compreender, algumas mudanças inevitavelmente assustam. Assombram. Causam estranheza. Simplesmente porque não deveriam ocorrer de modo tão rápido, atabalhoado e sem pensamento. Porque o conhecimento da mudança nos ensina a planejar o futuro, a traçar planos, aqueles que mesmo não seguidos ainda oferecem uma baliza certa para seguirmos, um caminho seguro a ser trilhado mesmo nos momentos de maior incerteza e escuridão de ideias. Assim como as mudanças, o planejamento também é necessário. Quando as primeiras ocorrem sem que o segundo as precedam, quase sempre o resultado é uma tragédia de maior ou menor dimensão.
Ainda me lembro dos meses de maio e junho de 2013, e de suas inesquecíveis manifestações de rua. Morador de Jundiaí, trabalhador da avenida Consolação, em São Paulo, eu mesmo participei de algumas das passeatas que repudiavam o aumento da tarifa de ônibus municipal ciente de que, naquele momento, esta não era a questão mais importante pela qual lutávamos. Expressa na frase “não são apenas 20 centavos” buscávamos mostrar à nação, então, que o tempo do comodismo havia passado, que era necessário lutar por um país mais justo e igualitário, e entre as inúmeras faixas carregadas com orgulho naqueles dias (melhor dizendo, noites) muitas se referiam ao estado calamitoso da saúde e da educação do país, exigindo maiores investimentos e maior cuidado do poder público com estes setores tão centrais para o bem estar da população. Entendíamos, ali, que uma mudança positiva estava se iniciando. O tempo de ficar em casa em frente à TV, de se mobilizar com votações de ridículos programas de reality show ao invés de cobrar os governantes por nós eleitos, havia passado. O país seria melhor. O plano era infalível. Uma sociedade mais justa, mais igualitária, menos corrupta e mais feliz. Esse era nosso ideal naquelas noites agradáveis vividas na paulicéia desvairada.
Então, o tempo passou, e as mudanças vieram. Com elas vieram os black blocks, este fenômeno reacionário de fundo neonazista ainda incompreensível para muitos pensadores, eu incluído. E começaram a sair do fundo dos armários aqueles esqueletos vestidos em trapos e portando pedaços de carne apodrecida exigindo a volta da ditadura militar, assombração temida que, após ser exaustivamente exorcizada acreditávamos que havia desaparecido completamente da face do planeta. E então vieram exigências pelo impeachment de um governo corrupto, imoral, bandido, sem que a razão de tais acusações jamais viessem à tona. E então a posse na presidência de um traidor vil, cujas feições fisionômicas bem remetem à inesquecível personagem do cinema mudo – Nosferatu. E então aquelas faixas pela melhoria da saúde e da educação perderam sentido. Desapareceram das passeatas, substituídas pela demonização do outro, daqueles que, acusados como os causadores de todos os males do país, serviram como bodes expiatórios de toda uma nação. Sim, porque nestes novos tempos de mudança lançar na imprensa, nas redes sociais, nas rádios e nos programas televisivos frases com o mantra “todo petista é corrupto” como pano de fundo não mais causa vergonha pela flagrante renúncia à capacidade de pensar, àqueles conhecimentos básicos aprendidos nos primeiros anos de frequência aos bancos escolares que definem que a própria diversidade humana já impede, de saída, qualquer generalização por mais inocente que pareça. Como se apenas um partido fosse corrupto. Como se o Nosferatu redivivo não tivesse sido, ele mesmo, citado várias vezes em delações premiadas da Lava Jato, defendida por todos e aplaudida pela população desde que ataque apenas um grupo político.
Mas a educação e a saúde não foram esquecidos. Não! Jamais o seriam! Também recebem um novo lugar, modificado, próprio deste tempo de mudanças. Ele está expresso no item 21 da EMI 83/2016, espécie de carta de recomendação que o atual ministro Henrique Meirelles enviou a seu novo amigo vampírico em acompanhamento à PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 241/2016. Me permito citar parte do referido item, por ser absolutamente sugestivo deste novo valor votado à saúde e à minha sempre querida educação: “Um desafio que se precisa enfrentar é que, para sair do viés procíclico da despesa pública, é essencial alterarmos a regra de fixação do gasto mínimo em algumas áreas. Isso porque a Constituição estabelece que as despesas com saúde e educação devem ter um piso, fixado como proporção da receita fiscal. É preciso alterar esse sistema, justamente para evitar que nos momentos de forte expansão econômica seja obrigatório o aumento de gastos nestas áreas e, quando da reversão do ciclo econômico, os gastos tenham que desacelerar bruscamente.”
Não, caro leitor, não inventei as últimas linhas. Elas efetivamente existem. Foram escritas pelo ministro da Fazenda de um governo que, em última instância, tem sua razão de ser na traição e naquelas primeiras manifestações por mim presenciadas com correria, explosões de bombas de gás, queima de latões de lixo, e… exigências por melhorias na saúde e na educação. Foram escritas exatamente três anos após eu acreditar que as mudanças seriam para melhor, para um país mais justo e igualitário. Um país no qual o povo seria respeitado, e se faria respeitar. Três após os quais ainda se exige o efetivo impedimento de uma presidente sob acusação de corrupção enquanto sequer é mencionado o envolvimento do senhor dos caninos grandes em grandes esquemas de desvio de dinheiro público. Após os quais governadores ainda lançam tropa de choque sobre professores, com explosões e balas de borracha que ferem e cegam no objetivo único de minar a resistência dos espoliados prestes a perder décadas de contribuição compulsória que, foram forçados a acreditar, lhes garantiria uma velhice com o mínimo de conforto e dignidade após formarem gerações de novos brasileiros. Após os quais outros governadores, mais discretos, se limitam a peregrinar à Meca das negociações escusas – Brasília – em busca do abatimento ilegal de suas dívidas ilegalmente contraídas. Três anos após os quais aqueles que pediam um país melhor hoje se contentam em exigir diminuição dos gastos públicos e fim dos famigerados “gastos vinculantes”, os quais incluem, precisamente, investimentos em saúde e educação. Não que controle de despesas não seja algo necessário e desejável. Claro que é! Mas com critério, com pensamento, com aquele planejamento que, no já longínquo 2013, eu imaginei que seria a tônica dali por diante.
E com isso, mais uma vez o país segue, à deriva, sem timoneiro, sem comandante, navegando por mares que não pode controlar. Se calmos e com bom vento, a caravela tupiniquim navega acelerada para bons portos. Se calmos e sem vento, estagna miseravelmente na recessão. Se revoltos, nos leva à beira do afundamento de modo inapelável. Enquanto isso o povo sofre. Pessoas seguem morrendo em filas de hospitais. Faltam médicos, faltam medicamentos, faltam seringas. Professores acordam para trabalhar sabendo que receberão vergonhosos salários e nenhum reconhecimento. Mais, que não podem sequer contar com a certeza de que as fatias consideráveis de seus salários tiradas compulsoriamente de seus bolsos mês após mês, ano após ano, década após década, voltarão em uma aposentadoria que lhes garanta o sustento. Deste modo o país muda mais uma vez, apenas para seguir o mesmo. Até quando é difícil prever. Apenas é certo que, uma vez mais, saúde e educação precisarão esperar, para cúmulo de sua desgraça, que nada mude na vã esperança de não ver sua situação ficar ainda pior.
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