Democracia e a escolha de cada dia
Passado mais um processo eleitoral, eis que é chegado, novamente, o momento de refletirmos sobre nossas escolhas e a importância que elas possuem em nossas vidas. Somos o que escolhemos. Ao respirar já optamos, instintivamente, pela vida, abandonando sem pensar por um segundo sequer a opção de nos deixarmos consumir pela degradação do material orgânico que nos forma enquanto seres vivos. Ao nos dirigirmos para a escola ou para o trabalho todas as manhãs também optamos, seja por seguir aquilo que acreditamos ser nossa vocação profissional ou seja, mais humildemente, por buscar os meios materiais que permitirão continuar vivos através da ingestão dos alimentos indispensáveis à nossa nutrição. Nada escapa a este fato: precisamos escolher, optar, eleger a cada segundo entre possibilidades diversas, nem sempre compatíveis entre si. A completa e absoluta falta de opção já constitui, por si só, uma ótima descrição para a morte, fim de tudo que conhecemos do modo como conhecemos.
O amigo leitor pode estar imaginando, neste momento, que se escolhemos o tempo todo, se estamos fadados a eleger opções diferentes para contextos diferentes, nem sempre esta escolha se dá de forma livre e desimpedida. O instinto que nos obriga a continuar vivos nos leva, por exemplo, a continuar respirando. O amor que temos por nossa família nos deixa como única escolha buscar desesperadamente por um emprego que nos permita colocar comida em seus pratos pelo menos três vezes ao dia. A existência de uma disfunção orgânica em nosso corpo – uma diabetes, por exemplo – nos veta de modo terminante determinadas escolhas, em nome do mesmo instinto de sobrevivência citado algumas linhas atrás.
Este também é, muitos acreditam, o caso nas eleições às quais somos obrigados por lei a comparecer a cada dois anos. Forçados a escolher entre opções que quase nunca acreditamos que nos atendam plenamente, somos forçados a votar naqueles que acreditamos ser o “menos pior” ou, ainda, a anular nosso voto como demonstração extrema de insatisfação com as alternativas que nos são apresentadas de modo compulsório. Período eleitoral, para muitos, representa apenas mais uma ocasião na qual somos forçados a escolher entre caminhos que simplesmente não nos atendem. E é normal que seja assim. Afinal de contas, se nos lembramos que cada ser humano tem seus próprios desejos, seus próprios objetivos, suas próprias prioridades, e que estes de modo algum serão idênticos e muito dificilmente serão até mesmo compatíveis com os de outras pessoas, fica fácil entender que ou nossa cidade lança um candidato para cada habitante, os quais certamente empatarão no cômputo geral por receberem apenas e tão somente o próprio voto, ou então teremos eleitores insatisfeitos por não encontrar nas opções apresentadas alternativas que representem sua própria forma de enxergar o mundo e planejar o próprio futuro.
O fenômeno é conhecido e nos acompanha ao longo de toda a história. Um dos mais antigos documentos escritos pela humanidade nos apresenta um sacerdote da antiga Mesopotâmia lamentando a má sorte de não poder escolher entre deuses que melhor atendessem às suas necessidades materiais imediatas. Na Grécia antiga, berço do sistema democrático, eram comuns os protestos contra governantes que, acreditavam os cidadãos, não representavam o melhor para sua pátria ateniense. Saltando vários séculos e atravessando dois oceanos vamos encontrar, na América Portuguesa de 1821 (território que alguns meses depois se transformaria no Império do Brasil), cartas particulares de eleitores indecisos entre qual opção escolher dentre tantas alternativas ruins. Pelas décadas seguintes a questão ganharia ainda maior ímpeto. Basta passarmos os olhos por sobre as inigualáveis crônicas de Machado de Assis para percebermos que, para este que é um dos maiores escritores que a humanidade já conheceu, o período eleitoral nada mais era que uma oportunidade de conhecer pessoas até então desconhecidas, entrar em contato com novos modos de propor coisas desimportantes e conscientizar-se de necessidades que ninguém sequer imaginava que possuía.
A ironia fina machadiana nos remete a um período no qual o sistema político era monárquico, mas a forma de escolher os governantes já era a eleição. Engano pensar que democracia é privilégio de uma república. Erro supor que na república a indecisão se torna mais grave graças a uma pretensa pior qualidade dos candidatos quando comparados às alternativas dos “bons velhos tempos” aos quais todos gostamos de nos remeter, ainda que não saibamos precisar muito bem quando ocorreram (para uns foi na própria infância; para outros na juventude; outros, ainda, poderão considerar que foi na semana passada… para cada trajetória existe um momento passado que, supostamente, é muito superior ao atual). A grande questão, aqui, reside em que o descontentamento com a própria escolha não elimina a responsabilidade assumida com sua realização. Afinal a desculpa que afirma “votei nele por falta de alguém melhor” é tão antiga quanto a própria humanidade, fato que por si só já remete à sua falta de operacionalidade enquanto justificador de uma decisão mal tomada.
Democracia envolve mais do que o comparecimento às urnas. Mais do que simplesmente escolher entre opções das quais não gostamos. É apenas a compreensão deste fato que nos permite compreender toda a dimensão de nossa importância enquanto agentes construtores de nosso futuro. Isto porque envolve a verdade de que a eleição é apenas o primeiro passo de uma longa caminhada de quatro anos das quais todos somos responsáveis. Afinal de nada adianta votar se não fiscalizarmos se as promessas que nos levaram a esta decisão não forem cumpridas até o final do mandato de nosso governante. Se acredito na importância da educação, por exemplo, e optei por eleger candidatos que prometiam defender uma educação de qualidade, esta escolha de nada valerá se eu não fiscalizar permanentemente o cumprimento das promessas realizadas. É como na nossa vida pessoal: se nos prometem reiteradamente coisas que não são cumpridas, e nada fazemos para evitar a repetição deste fato, porque imaginar que um belo dia, de modo mágico, passaremos a ser respeitados por aqueles que até então simplesmente não nos consideravam dignos de respeito? Como esperar que tenhamos opções eleitorais melhores se não nos esforçamos por cobrar qualidade daqueles que acabamos de eleger? Como sempre a mudança deve partir de nós, e só então espalhar-se pela comunidade que nos cerca.
A responsabilidade quanto ao nosso futuro é pessoal, intransferível, e se configura em escolhas e opções feitas a cada minuto de nossa existência. Como a que nos leva a cobrar nossos governantes, por exemplo. Ninguém gosta de ser cobrado. Ninguém fica confortável ao ser fiscalizado. Mas aceita tais práticas desde que não deva nada, e não tenha nada a esconder ou a temer que seja descoberto. A simples adoção destas medidas, portanto, já configura uma estratégia bastante eficaz para a obtenção de opções melhores nas próximas eleições. Agora também é hora de tomar decisões, as quais nos acompanharão pelos próximos quatro anos. As eleições podem ter acabado, mas a democracia não termina nunca, antes se renova a cada dia. Optemos por torná-la real, tangível, eficaz. Trata-se de uma responsabilidade que só cabe a nós, enquanto cidadãos conscientes de uma sociedade que queremos cada vez melhor. Até a próxima!
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