Diga “coração”. – “Curaçau.”
Esse talvez seja o som mais distintivo da língua portuguesa, cuja incapacidade de pronunciar pode ter transformado a ilha de Coração (ou Curação, conforme outras teorias), como a chamavam os portugueses, em Curaçau, no Mar das Caraíbas. O som do ditongo ao denuncia se o falante é nativo da língua portuguesa ou não. O nome que se dá, na Linguística, para esse tipo de fonema, é xibolete: uma peculiaridade da pronúncia, um som que apenas os falantes nativos conseguem distinguir ou reproduzir. Conta-se uma história de que o poeta Mário Quintana teria escrito ao Papa João Paulo II, que era poliglota, tentando ensiná-lo a pronunciar o som do ditongo. Diria a carta: “Sendo Vossa Santidade um poliglota notável, vejo que não consegue pronunciar o famoso ão da língua portuguesa. E tomo a liberdade de esclarecê-lo sobre esta pronúncia. Considere o ão como dois monossílabos, ã mais o, e tente pronunciá-los cada vez mais rapidamente. Assim obterá o nosso ão. Esperando sua bênção, respeitosamente.” Não sei se os professores de língua portuguesa para estrangeiros utilizam essa dica, mas acredito que, como o Papa, muitos estrangeiros encontram dificuldade em pronunciar nosso “ão”.
A história do termo xibolete remonta ao idioma hebraico, sendo uma transliteração da palavra /shibbōleth/, que significa “espiga de grãos” ou “torrente de água”. No livro de Juízes, capítulo 12, no Velho Testamento, conta-se a história de uma guerra entre duas tribos semitas, os gileaditas e os efraimitas. Após vencerem a guerra, os gileaditas pretendiam barrar as passagens para o Rio Jordão dos efraimitas sobreviventes, e exigiam que cada um que quisesse passar dissesse a palavra “shibboleth”. Como os efraimitas não possuíam em sua língua o som de “sh”, acabavam dizendo “sibboleth”, sendo assim identificados e mortos.
Morrer por causa da pronúncia parece bizarro, mas identificar os inimigos por ela é algo comumente utilizado em confrontos. Aqui no sul do Brasil, por exemplo, durante as revoluções de 1893 e 1923, os uruguaios (castelhanos) eram identificados ao não pronunciarem o nome da letra “j” como nós o fazemos, produzindo um som aspirado /rōta/, ou a letra “z”, na palavra “pauzinhos”, que pronunciavam como “paucinhos”. Durante o massacre das Vésperas Sicilianas, em 1282, os sicilianos pediam aos soldados franceses que dissessem a palavra ciceri (uma espécie de ervilha seca). No italiano, a letra “c” é pronunciada com o som /tch/, e a palavra soaria “tchitcheri”, mas a língua francesa não possui esse som, e os soldados eram então identificados.
Entre as muitas nuances de pronúncia pelo Brasil, hoje em dia não nos preocupamos em perder a cabeça por um uso diferente ou equivocado; mas há quem se incomode tanto com quem não acerta o som quanto com quem o corrige. Está nas memórias do poeta Manuel Bandeira que, quando criança e aluno no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, foi corrigido por seu professor de Geografia quando respondeu que o maior rio de Pernambuco era o “Capibaribe”. O mestre lhe disse: “Bem se vê que você é pernambucano!” E corrigiu-o dizendo que o rio se chama “CapibEribe”.
Não apenas a pronúncia, mas o uso de determinados termos constitui também uma identificação. O torcedor amazonense celebra o gol gritando “Pega!”, o que poderia fazer pensar os desavisados que ele estivesse torcendo para o goleiro adversário agarrar a bola. Com o tempo, o significado do termo “xibolete” foi ampliado, e pode indicar, também, além de sons e palavras, hábitos ou características que sejam distintivos. O xibolete próprio de Freud, nas suas próprias palavras, era o fator da sexualidade. Há também os xiboletes modernos. Reparem no discurso político da atualidade, onde o uso de certas palavras e expressões reforçam o pertencimento a determinados grupos. No Brasil, basta alguém usar termos como “presidenta” ou “petralha”, e logo se identifica sua posição política. Lê-se, por exemplo, num tweet de 2014: “Acho muito loko isso de a pessoa falar ‘neoliberal’ e eu já ter certeza da opinião dela sobre Maria Bethânia.”Numa cena do filme “Bastardos Inglórios”, soldados aliados disfarçados de nazistas dividem uma taberna com soldados da SS. O soldado inglês é traído ao pedir mais três canecas de cerveja usando os três dedos do meio da mão ao invés dos três primeiros, incluindo o polegar, como fazem os alemães.
A forma como falamos pode dizer quem somos. Para os sociolinguistas, trata-se da função identitária da linguagem humana. O modo como falamos nos denuncia como indivíduos pertencentes a um tempo, um lugar, ou grupo específicos. São os sinais identificadores na pronúncia, na escolha das palavras, na gramática, que distinguem as variedades linguísticas: dialetos, socioletos, idioletos. Revela-se, assim, o poder discriminatório da linguagem, que tanto pode ser usado para incluir como para excluir.
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