Divagações sobre a ciência como elemento constituinte da identidade
Identidade. Conceito tão presente no cotidiano de nossas vidas e, ainda assim, tão pouco estudado e refletido. No campo historiográfico a ideia de identidade vincula-se poderosamente aos estudos em torno dos nacionalismos, invenção teórica capenga, porém sagaz, dos séculos XVIII e XIX e que ainda pauta a vida de bilhões de seres humanos pelo planeta Terra afora. O inglês Eric Hobsbawm, por exemplo, possui dois estudos indispensáveis a qualquer um que queira entender a origem e o funcionamento da identidade nacional, elemento ao qual nos é cobrada adesão cotidianamente, mesmo que em momento algum nos tenha sido dada a oportunidade de escolher em qual Estado iríamos nascer (se algum dos amigos leitores tiver memória desta escolha, por favor me diga para que eu possa buscar pela minha). O também inglês Benedict Anderson nos apresenta a nação como uma “comunidade imaginada”, colocando a questão da identidade do lugar ao qual eu, como cientista da área historiográfica, concordo que é seu de fato e de direito: no campo da imaginação, sem qualquer raiz que o prenda concretamente à existência humana real, biológica.
Neste sentido, me agrada a abordagem que torna a identidade o fruto de dois processos diferentes, os quais podem ser complementares ou não. Um se prende a questão do compartilhamento de experiências ao longo do tempo. Grupos se formariam a partir da convivência em um mesmo espaço geográfico (o qual, modificado pelos seres humanos se torna território), da definição de leis e crenças comuns, de cultura e idiomas também compartilhados. Trata-se de uma identidade histórica. Nos unimos por aquilo que nossos antepassados fizeram, desejaram, construíram, abandonaram, projetaram que nós realizaríamos. O que nos uniria em uma comunidade, por este lado do prisma, seria nada mais que a sombra de nossos avós, fantasmas de gerações passadas que transitam entre nós trazidos à vida pela imaginação compartilhada de milhões de pessoas. Fatos passados travestem-se de uma concretude que quase se pode tocar com os dedos. Não consigo deixar de imaginar que era também nisso que Karl Marx pensava quando afirmou, acertadamente, que “tudo que é sólido desmancha no ar”.
O outro sentido da identidade é mais contemporâneo, na medida em que se vincula à existência e convivência concreta entre os seres constituintes de uma comunidade em um momento histórico muito bem determinado: o agora. Trata-se da ideia ancorada no compartilhamento de interesses em comum. Uma comunidade se forma, de acordo com esta definição, a partir dos objetivos, desejos e projetos compartilhados por todos os seus elementos. Fruto do passado, tais interesses avançam para o futuro através das ações conscientes de milhões de pessoas que optam livremente por priorizar alguns projetos enquanto abandonam completamente outros. A identidade, neste sentido, traveste-se em ação cotidiana, política, relacional. O alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel chamou a esta identidade única “volksgeist”, ou “espírito do povo”. Cada nação seria dotada de uma identidade única, capaz de diferenciá-la de todas as demais do globo. Para este intelectual, reconhecer-se-ia o espírito de um povo pelos projetos que ele escolhe empreender, mas também por todos aqueles que ele opta livremente por abandonar. A partir daí identifica-se a trilha demarcadora de sua caminhada histórica, algo parecido com a digital que colocaria cada sociedade em seu devido lugar no concerto das nações.
Onde entra a ciência em toda essa breve introdução ao conceito de identidade. Mais: o que tem a ver o Brasil com todo esse debate? Puxemos pela memória, caro amigo leitor. No último dia oito de maio o governo alemão anunciou investimentos da ordem de 160 bilhões de euros para a melhoria de suas universidades públicas e seus institutos de pesquisa, no período entre 2021 e 2030. Em termos concretos, este número representa um aumento da ordem de dois bilhões de euros por ano, comparado com o investimento realizado até 2019. Realizando uma conta simples de câmbio, são aproximadamente 700 bilhões de reais investidos em ensino superior e pesquisa. Para a ministra da Educação alemã, um projeto empreendido com o objetivo de “garantir a prosperidade” de seu país.
Pouco mais de uma semana antes, no dia trinta de abril, o governo brasileiro havia anunciado um corte de 30% no orçamento de todas as instituições federais de ensino, pesquisa e extensão, um total de 5,8 bilhões de reais que deixarão de chegar a estas instituições pela via do Ministério da Educação. Conta simples: se 5,8 bilhões representam 30% do orçamento destas instituições, o orçamento original a elas destinado seria de algo em torno de 20 bilhões de reais (me corrijam se eu estiver errado, por favor). Compare o amigo leitor estas cifras com as despendidas pelo governo alemão, que está aumentando a fatia do orçamento destinado ao ensino superior e à pesquisa. Agora coloque nesta conta, ainda puxando pela memória, o fato de que algumas semanas após o anúncio feito pelo MEC, em um domingo, milhares de brasileiros se dispuseram a ir voluntariamente às ruas defender o governo brasileiro. E que, a menos de dois anos, milhões de brasileiros também foram às ruas defender um movimento grevista com faixas, adesivos e camisetas com os dizeres “Somos todos caminhoneiros”. Os mesmos brasileiros que agora, diante da possibilidade de paralização dos professores cuja qualidade do trabalho já está sendo diretamente afetada pelos cortes do governo, começam a atacá-los com palavras pejorativas como “vagabundos”, “privilegiados” e outros elogios impossíveis de transcrever neste espaço de respeito. Feito este exercício, considere, agora, todo o debate acima referido da identidade. Qual é o papel da ciência da identidade nacional brasileira, cuja sociedade não apenas recusa recursos para seu bom andamento como ainda age com hostilidade contra aqueles que se mobilizam para defendê-la? Esta resposta, o amigo leitor irá me desculpar, mas deixarei para que ele mesmo a ela chegue. Até a próxima!
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