Em defesa da diversidade
Na última segunda feira, dia 13 de junho, fui surpreendido durante meu tradicional e cada vez mais rápido repasse pelos noticiários impressos do Brasil e do mundo por mais uma daquelas trágicas notícias tão típicas de seus cadernos “mundo” e “internacional”. Na cidade de Orlando, Flórida, Estados Unidos, um jovem estadunidense de 29 anos entrara em uma boate gay armado de um fuzil e uma pistola e, tomado por uma sanha assassina, acabara com a vida de 50 pessoas antes de ser ele próprio morto pela polícia da cidade. O massacre, ocorrido durante o fim de semana, foi rapidamente colocado na conta de atentados terroristas e gerou comoção não apenas na cidade onde ocorreu, mas em todo o país. Nas principais páginas impressas e sites dos noticiários, as sinceras condolências às famílias das vítimas, jovens que saíram para se divertir em uma noite de sábado e simplesmente foram impedidas de voltar para casa pela ação de um ser humano de conduta inominável. Vários e oportunos questionamentos à facilidade com que podem ser adquiridas armas naquele país, sem que qualquer checagem com relação aos antecedentes do consumidor seja realizada por quem quer que seja – consta que o autor dos disparos já havia sido investigado pela polícia por possíveis vínculos com grupos terroristas. O que motivou a realização de análises acerca das origens afegãs do atacante, o qual teria ligado para a polícia antes de realizar os disparos com a única finalidade de deixar clara sua vinculação com o Estado Islâmico – grupo terrorista mundialmente conhecido e combatido. Finalmente, mas, de modo sintomático, em uma escala muito menor, foi referido por alguns comentaristas e pelo presidente estadunidense Barack Obama o fato de que as vítimas eram homossexuais, o que naturalmente enquadra o ocorrido no rol dos crimes motivados pela intolerância à diferença.
O trágico acontecimento nos permitiria traçar interessantes análises sobre elementos característicos da sociedade e da cultura estadunidenses, tão invejada quanto desconhecida de grande parte de nossos familiares, amigos e conhecidos. Mas, ao realizar tal exercício, eu estaria deliberadamente fugindo aos objetivos fundamentais desta coluna, os quais giram em torno da necessidade de compreensão de nossa própria sociedade, sempre que possível a partir do conhecimento de processos históricos importantes para sua formação e constante transformação ao longo do tempo. E, a bem da verdade, a tragédia ocorrida em Orlando também joga luz sobre nossa própria cultura, nossos próprios valores. E não digo apenas enquanto brasileiros, mas enquanto porto-união-vitorienses mesmo (desculpem, mas não consigo me furtar a utilizar um gentílico que, embora fictício, serve para congregar os moradores de ambas as cidades). O caso foi trivial. Na mesma segunda feira em que li a notícia e pesquisei rapidamente sobre seus desdobramentos na imprensa brasileira e mundial, me dirigi ao banco para sacar algum dinheiro, na hora do almoço. Como é comum neste horário a espera em uma pequena fila foi inevitável, durando tempo suficiente para tomar contato, meio a contragosto (quem nunca ficou mal-humorado quando com fome?), com a animada conversa entre duas senhoras, uma mais jovem, a outra de idade mais avançada. O tema: o massacre dos Estados Unidos. Lamentações sobre a sorte das vítimas e das famílias, o absurdo da completa falta de controle sobre a venda de armas, a loucura dos terroristas, e, ao final, a frase que colocou abruptamente fim à conversa (pelo menos para mim, que em estado de quase choque simplesmente não consegui mais registrar o que era dito – exatamente como desejei quando entrei no banco, mas pelo pior motivo possível): “mas, pelo menos, só morreram gays pelo que ouvi, né?”
Fiquei estático. Durante um minuto, talvez apenas alguns segundos que pareceram durar eras, senti um misto de espanto, de incompreensão, de repulsa. Como assim “pelo menos só morreram gays”? Caso não fossem a tragédia teria sido mais terrível? As lamentações seriam mais sentidas? As famílias que perderam seus filhos, pais e irmãos sofreriam ainda mais? O ocorrido mereceria maior repulsa? Penso ter ouvido alguma resposta atravessada, porém educada, da outra senhora que tomava parte na conversa, mas confesso que não prestei maior atenção a ela. Eu estava, então, fitando a cidadã aparentemente cristã (fazia uso de um vistoso pingente de crucifixo no pescoço) enquanto ela se dirigia ao caixa eletrônico, imerso em meus próprios pensamentos. É incrível como são nos atos mais corriqueiros do cotidiano que o caráter profundo de uma pessoa se faz notável. É do rápido, do instintivo, do reflexivo, que as crenças mais arraigadas se utilizam para driblar o autocontrole, o respeito às convenções sociais, ao “politicamente correto”. Para aquela senhora, a mais jovem das duas, não há como contestar: um homossexual vale menos do que uma pessoa considerada “normal”. Ela sentia muito pelas vítimas, aparentemente de modo sincero. Mas sentiria ainda mais caso elas não frequentassem uma boate voltada para o público LGBT.
O conservadorismo da sociedade brasileira é notório e conhecido de todos os especialistas. A escravidão foi abolida não por consideração aos escravizados, mas pelos prejuízos à imagem do país que a preservação do trabalho compulsório provocava. Já entrado o século XX, a extensão do direito de voto às mulheres, em 1932, só se tornou realidade após enfrentar intensa luta dos setores sociais que a ele se opunham, assim como ocorreria com a legalização do divórcio, ocorrida décadas depois. Até 2002, data em que o Código Civil promulgado em 1916 foi finalmente substituído, um casamento ainda podia ser desfeito caso o marido constatasse que a noiva não casara virgem, e ainda hoje não é raro encontrar quem se disponha a bater palmas e a defender que o homossexualismo é uma doença, e como tal deve ser tratada e “curada”. Verdadeiro “avanço” no âmbito do pensamento ultraconservador brasileiro. Não basta mais apresentar o diferente como um pecador digno de excomunhão… agora ele se tornou um doente, um caso patológico que só pode ser curado mediante tratamento intensivo. Afirmação com fundo nazista, é preciso que se diga. Nada menos do que isto. Também era próprio do grupo dirigente da Alemanha, entre os anos de 1933 e 1945, propor a cura de homossexuais, ciganos, judeus e outras minorias, apresentados à sociedade como “maculadores” da pureza racial alemã. Naquele caso, a doença desapareceria com a realização de trabalhos forçados. Em casos mais extremos (como no de crianças nascidas com algum tipo de limitação física), apenas com a morte. O resultado de tais doutrinas todos conhecemos muito bem. O que espanta é que estes ideais insistam em proliferar entre nós, como um fantasma enviado diretamente dos calabouços do passado para nos assombrar. Já escrevi neste espaço uma vez e afirmo ainda outra: a história não se repete jamais. São os homens e mulheres do presente que insistem em repetir os mesmos erros, renunciando voluntariamente à sua própria melhoria enquanto indivíduos e enquanto entes sociais.
É preciso que fique claro: os homossexuais, assim como os negros, as mulheres, os ciganos e todas as minorias, são seres humanos integrais em direitos e deveres que merecem o mais completo respeito. Eis um princípio óbvio que, francamente, não deveria precisar de enunciação. Repugna a ideia de que alguém possa ser julgado ou desmerecido por sua opção sexual que, sejamos claros, interessa a ele (ou a ela) e a seus parceiros e parceiras, e a mais ninguém. Repugna enquanto valor humano, mas também enquanto princípio social. Uma sociedade só pode ser concebida, só pode ser organizada e dimensionada enquanto o espaço comum de indivíduos que são, por definição, diferentes. É precisamente sobre isso que repousa a democracia: a aceitação e o respeito às diferenças. E é sobre a diversidade que descansa a única possibilidade viável de evolução da humanidade. Que seria dos europeus, não fosse a matemática e os conhecimentos arquitetônicos árabes? Que seria do Brasil não fossem as inúmeras contribuições das etnias que compõe sua nacionalidade? A valorização da diversidade é, este sim, um fato histórico que vale a pena resgatar e defender. Para nosso próprio bem, e para melhoria da sociedade da qual fazemos parte. Até a próxima!
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