Escola sem Partido: uma ideia sem sentido
A proposição de projetos de lei esdrúxulos não são nenhuma exclusividade do tempo presente e nem, tampouco, uma característica exclusivamente brasileira. Não é preciso ir muito longe na História para encontrarmos um presidente da República – no caso Jânio Quadros – se envolvendo pessoalmente e empenhando todo o seu capital político na aprovação de leis proibindo a rinha de galos ou o uso de biquíni na praia de Copacabana. Caso queiramos recuar mais no tempo, contudo, poderemos encontrar aqui mesmo no Brasil, em 1885, a promulgação de uma lei que libertava todos os trabalhadores escravos maiores de sessenta e cinco anos, proposta que demonstra toda a sua dimensão absurda quando lembramos que a expectativa média de vida de um escravizado, na época, não passava dos trinta e cinco anos nos melhores casos. Se formos para o exterior encontraremos, nos Estados Unidos, leis municipais que proíbem a circulação de automóveis sem motoristas (caso o leitor tenha lembrado, neste momento, da recente tecnologia de carros autônomos desenvolvida pelo Google saiba que essa lei tem mais de trinta anos, portanto nada tem a ver com a iniciativa da gigante na área de tecnologia), que proíbem colocar gatos no forno de microondas ou, no caso de uma metrópole européia, que proíbe terminantemente que qualquer pessoa salte do alto de prédios maiores que cinco andares. Os exemplos são variados, mas seguem uma regra mais ou menos comum: tratam-se de leis geralmente descoladas da realidade, que causam o riso ou a estranheza por regulamentarem ações extremamente pequenas perto das grandes dificuldades pelas quais passam as nações, ou por se basearem em ideias completamente sem sentido, geralmente esposadas por grupos de pessoas ignorantes (no sentido próprio do termo – “aquele que ignora”, e não no sentido pejorativo no qual se convencionou utilizá-lo) do conteúdo sobre o qual pretendem legislar.
Me parece que o famigerado projeto de lei denominado “Escola Sem Partido” se encaixa neste segundo caso de modo exemplar. Realmente causa estranheza a simples sugestão de que uma pessoa que possua um conhecimento ainda que mínimo de como funciona uma sala de aula, ou de como pensam nossos jovens, possa defender tal ideia. Ela parte do pressuposto de que jovens de quinze, dezesseis e dezessete anos são entes indefesos, apáticos, plenamente receptivos às ideias e conceitos oferecidos por professores maquiavélicos ávidos por se valer de sua posição de transmissor de conhecimento para criar uma legião de seguidores autômatos de suas ideias de dominação social. Ainda que seja impossível ignorar que, de fato, existem professores que buscam doutrinar jovens e adultos de forma autoritária e sem espaço a qualquer contestação ou debate construtivo, tornando-se indignos da distinção que deveriam receber da sociedade (mas não recebem), também seria no mínimo estranhável que alguém ignorasse o fato de que, em um país ainda marcado pelo analfabetismo e pelos baixos índices de escolaridade são exatamente os docentes quem, com seu conhecimento altamente especializado e sua efetiva capacidade de compreensão da realidade que nos cerca, são os mais qualificados para emitir opinião sobre acontecimentos que pautam nosso cotidiano. Afinal, sejamos francos e diretos: se um professor que estudou pelo menos dez anos para ocupar seu lugar social não está apto a formar ideia sobre a realidade do país, quem estaria? Um deputado que vota medidas de alcance nacional em nome da mãe, do pai, do cachorro, de Deus? Novamente, me parece que o apoio de tal possibilidade demonstra uma preocupante falta de conhecimento de como se costuram coligações e de como é conduzida nossa política no âmbito nacional.
Não vou retomar aqui o argumento – também corretíssimo – de que qualquer ato humano é essencialmente político e, portanto, pensar uma escola na qual a política não possua seu lugar representa uma impossibilidade tanto conceitual quanto fatual. Argumentos muito bem elaborados neste sentido já foram desenvolvidos por intelectuais muito mais qualificados que eu, e repisar a trilha por eles aberta pouco acrescentaria que, já que está sendo feito, precisa sê-lo com o maior cuidado e circunspecção. Quero voltar ao cotidiano da sala de aula, neste momento. Alguém que imagine que adolescentes de quinze anos são receptáculos passivos de tudo quanto possa ser dito por um educador em ambiente escolar é, no mínimo, ignorar os aspectos mais básicos da convivência em sala de aula. Não creio ser possível que alguém ignore a lembrança de algum professor estigmatizado com apelidos pejorativos pelos alunos por tentar inculcar-lhes esquemas de pensamento que simplesmente não foram aceitos, por alguma razão, pelo conjunto dos estudantes. Isto é resistência. Pacífica, divertida, criativa como são nossos jovens. Mas resistência. Tive professores que tentaram me ensinar valores que simplesmente me recusei, desde muito cedo a aceitar. Não, autoridade não existe para ser obedecida. Deve, sim, ser referendada e, caso não o seja, questionada. Não, a religião não deve se sobrepor, em meu modo pessoal de entender, ao uso da razão, como um professor de Biologia tentou me convencer ao longo de três anos. Tampouco a ciência elimina toda e qualquer necessidade de Deus, como um professor de Física certa vez afirmou. Ouvir tais opiniões não me tornou clérigo nem ateu: me fez formar minha própria opinião sobre o assunto. Posso assegurar que o mesmo se passou com vários de meus colegas na ocasião.
Isto é, afinal de contas, a democracia. O convívio com opiniões diferentes, o embate de esquemas de pensamento discordantes, a definição de posições pessoais com base na síntese de conceitos formulados por outro é uma necessidade que cabe, sim, à escola atender. Como esperar que tenhamos uma sociedade consciente, crítica e tolerante se não ensinamos o que são e, mais importante, como se vivem estes valores no ambiente da sala de aula? Como ensinar os cidadãos do amanhã valores fundamentais de convivência social se os confinamos em bolhas artificialmente criadas em torno de homogeneidades teóricas que de modo algum correspondem ao dia a dia de nossas cidades? É um contrassenso que, de novo, não pode passar despercebido a alguém que seriamente se preocupe com o futuro da nação. Mas é preciso garantir que valores pétreos fundamentais não sejam questionados no ambiente escolar, dizem. Mas aí vale refletir sobre a definição de tais valores, a quem atendem e quais interesses esposam e, em última instância, se é possível reformar uma sociedade para torná-la melhor sem reformar, primeiramente, as bases que definem sua constituição há séculos. Trata-se de uma discussão que apenas a sociedade pode fazer, em um ambiente realmente plural e democrático. Não me parece algo que deva ser definido, portanto, em gabinetes parlamentares através de negociações políticas que não raro pouco tem a ver com a população, ou através de um projeto de lei imposto à coletividade como se dela não se tratasse.
A solução, portanto, não passa pela imposição de menos política, menos opinião, menos debate nas escolas, mas sim por mais desses elementos. Não se trata de impedir o livre embate de ideias, mas sim de criar espaços adequados para que estes sejam livremente manifestados por defensores das mais diversas correntes e grupos. Não se trata, aqui, da salvaguarda ou não de princípios e concepções definidas no âmbito da convivência familiar, mas sim de oferecer aos cidadãos do amanhã a oportunidade de conhecer modos diferentes de compreender e planejar seus próprios futuros. Esta é, afinal, a razão de existir do ambiente escolar, sem o que ele perde completamente a serventia nos tempos que correm, em que a informação está disseminada a tal ponto, e a tal ponto de fácil acesso a todos que sua simples transmissão não precisa de pessoal qualificado para garanti-la. A questão, neste sentido, não passa pela transmissão de informações, mas sim do ensino de como trabalhar com elas, tornando-as úteis para a realidade concreta de cada indivíduo e de sua convivência com o todo social.
Finalmente, a título de conclusão deste exercício de análise, quero deixar aos queridos leitores um questionamento que, acredito, vale a pena ser feito. Defender a existência de uma escola sem debates políticos, livre de qualquer supostamente nefasta influência de entes externos ao ambiente educacional, não é, em si mesmo, uma ideologia? Seria possível defender a coerência de uma proposta que cria exatamente a realidade que ela estaria, pretensamente, empenhada em evitar? Não se trata de uma proposta profundamente conservadora evitar que os gérmens do questionamento se desenvolvam exatamente no ambiente pensado, lá no século XIX, para seu amadurecimento, e sob os cuidados de profissionais especializados em incentivar o seu florescimento? É possível, nos dias que correm, defender que a sociedade está em um tal estado de perfeição que não é desejável que se transforme? E, sendo constatada a necessidade de transformação, retomo a questão anteriormente feita, é possível garanti-la sem a precedência do ensino da diferença, do debate, da convivência com a diferença? São estas questões centrais e necessárias, contudo não devidamente consideradas por aqueles empenhados em pensar a questão da educação sob o prisma deste projeto de lei que, não tenho o menor pudor em afirma-lo, é tão sem sentido quanto pode sê-lo uma proposta de regulação da sociedade que não leve em conta, sequer minimamente, suas necessidades mais urgentes e os meios mais eficazes de atendê-las. Até a próxima.
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