Estilhaços da memória
Escrevo, ou melhor, dito estas frases para a máquina inerte à minha frente. Ela me ouve, transforma o que lhe digo em palavras, frases e finalmente, em um texto acabado, entretanto, sem nada me dizer. Nem um comentário, nem uma opinião. Começam aí os estilhaços da memória, levando-me ao dia 2 de maio de 1967, dia em que faleceu minha avó, Maria Joana Linhares Augusto. Dia triste para um garoto de 8 anos, que exatos 49 anos depois, rememora esse dia e transpõe para o papel e Facebook, com o auxílio da impassível máquina, essa triste lembrança. Ainda lembro-me de suas últimas horas de vida, ela nem mesmo estava doente, tanto que estávamos em casa apenas eu, minha mãe e tia Dina. Tia Lulu participava de um evento social, se bem me lembro, no Círculo Militar e tio René estava em um bar com amigos. Minha mãe avisou tia Lulu, que a vó não estava bem, com muita falta de ar. Tia Lulu já veio com um médico, Dr. Domit, que ao examinar minha vó, constatou que se tratava de um edema pulmonar. Ela foi levada para o hospital, mas nada mais se pode fazer. Em 1967 os recursos médicos eram precários. Lembro também que tio René ao não conseguir avisar tio Lamartine, que morava em Pato Branco, decidiu ir até lá para avisar o irmão. A telefonia era igualmente precária, como os recursos da medicina.
Lembro-me de minhas primas chegando com tio Lamartine e tia Nely, Já na manhã seguinte e de tio René chegando apenas para o sepultamento, que foi atrasado, porque ele não chegava. Seu carro havia quebrado e ele teve dificuldades em obter auxílio.
Nesse mesmo ano, não lembro mais o mês, sei somente que foi após a morte de minha avó, não quis mais ir para a escola. Eu era muito introvertido e fui me fechando cada vez mais, até não suportar mais a escola. Mas como explicar isso para minha mãe e tias. E explicar o que? Algo que nem eu sabia por que acontecia. Tia Lulu me levava para o Externato e eu não entrava na escola. Esperava ela ir embora e vagava pelas ruas até mais ou menos a hora do término das aulas e ia para casa. Como eu não usava relógio, já desde criança não gostava dele, também sem saber por que, precisava perguntar as horas para alguém, para poder ir para casa. Como a tia Lulu, nesta época trabalhava na Rádio União, eu ia a pé para casa, que ficava muito perto da escola.
Isso aconteceu por 21 dias. Até que tia Lulu, por algum motivo desconfiada, não foi embora. Ficou com o carro estacionado bem em frente ao portão do Externato esperando eu entrar. Os alunos foram formando fila para entrar e eu ali, sem poder entrar, nem sair. Resolvi me esconder atrás do portão, mesmo sabendo que tia Lulu veria eu me esconder. Imaginei que ela pudesse pensar que eu estava brincando e fosse embora. Ela não foi. Pior que isso, desceu me apanhou ali em flagrante e fomos falar com a Irmã Superiora, que eu acho que era a Irmã Maria Rosa, sua amiga e que assim foi até o final de sua vida, com tia Lulu visitando-a, periodicamente, em um convento em Ponta Grossa.
A Irmã contou que eu não aparecia há semanas e contou também que eu havia dito que mudara para o Santos Anjos. Fui desmascarado e o pior além da reprimenda, é que teria que ir para a aula no outro dia.
No ano seguinte, já no 4º ano do antigo primário, era a hora da Primeira Comunhão. Naquela época a catequese durava apenas três meses e as aulas eram somente nos sábados. No sábado que antecedia a cerimônia, Irmã Maria Rosa telefonou para tia Lulu e disse: “A Primeira Comunhão é amanhã e o Augustinho, nunca apareceu na catequese”.
Augustinho era como os amigos de minha família me chamavam. Tia Lulu que era católica fervorosa, perguntou para a Irmã, e agora? A Madre Superiora lhe respondeu que era para ela me levar na escola na tarde daquele sábado. Para eu decorar o Ato de Contrição. Reprimenda em casa, reprimenda da Irmã, que eu ouvi calado, pois nada havia para me defender. Com minha boa memória, rapidamente, decorei a oração, que nunca mais esqueci.
Apenas muitos anos depois, fui entender porque agi daquela forma. Percepções tardias, mas esse é o assunto da próxima crônica.
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