Fanáticos? Alto lá…
Esta semana tive a oportunidade de, mais uma vez, verificar o quanto as pessoas são capazes de expressar seus reais sentimentos e opiniões naqueles momentos rápidos, efêmeros, quase imperceptíveis nos quais baixam a guarda do politicamente correto e se deixam levar pela liberdade dos pensamentos e concepções longamente cultivados na mente. Trata-se, como já tive a oportunidade de escrever em outras oportunidades neste espaço, de momentos especiais, oportunidades únicas que não devem ser desperdiçadas, uma vez que permitem mais do que qualquer documento, entrevista ou livro acadêmico compreender uma porção mínima porém significativa da essência de nossa sociedade, de suas ideias acerca de temas que aparentemente não provocam qualquer debate mais sério ou discordância acalorada, deixando no observador aquela dúvida inevitável: se todo mundo concorda com o que é apresentado como sendo o certo, porque tanta gente insiste em continuar fazendo o errado? Explico.
Estava eu em Curitiba realizando reuniões variadas com professores, servidores públicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN e entusiastas da causa da preservação da memória ferroviária na tentativa de trazer para nossa cidade uma parte da rica documentação da Rede Ferroviária Federal SA – RFFSA que, de modo súbito e inesperado simplesmente ficou disponível e sob iminente risco de destruição. Em uma edição futura desta coluna lhes explico melhor do que se trata, afinal é algo desejado por muitos de nossos conterrâneos e que certamente proporcionará a possibilidade da realização de numerosos e qualificados trabalhos de pesquisa em nossas cidades. Mas o caso é que no intervalo destas atividades, numerosas e densas o suficiente para ocupar todos os horários das últimas quinta e sexta feiras, durante o almoço com um destes entusiastas da preservação documental e da memória – que entretanto, é preciso que se diga, não possui qualquer formação na área histórica ou mesmo das ciências humanas – ouvi uma frase fugidia, quase não pronunciada, rápida e convenientemente esquecida, que representou uma destas janelas especiais descritas acima.
Conversávamos descontraidamente sobre a ferrovia que corta nossas cidades conhecida, graças aos trabalhos de Nilson Thomé, como “Ferrovia do Contestado”. Falávamos sobre sua construção, sobre seu traçado sinuoso, sobre sua importância para a economia brasileira e, mais especificamente, do sul do país no início do século XX, e como não poderia deixar de ser caímos no tema de seu abandono e arruinamento nas últimas décadas, a ponto de hoje se encontrar totalmente intransitável em nossa região. Por que teria ocorrido este abandono? Por que não seria possível realizar uma recuperação com vistas ao aproveitamento econômico da via, e não apenas turístico (aproveitamento turístico que, inclusive, me parece plenamente possível com as condições já existentes em nossas cidades)? As ideias se sucederam. O traçado ruim, que impedia o transporte de quantidades maiores de carga, prejudicando a viabilidade econômica. A opção conscientemente feita pelo governo federal de priorizar a construção de rodovias, em prejuízo das já existentes ferrovias. A existência de opções ferroviárias melhores do que a linha inaugurada no final do século XIX. Foi quando ouvi a seguinte frase: “mas não pode esquecer também dos fanáticos que, do nada, resolveram destruir tudo e afastaram os investidores da região.” Fanáticos. Palavra por si só pejorativa, referida sempre a pessoas que agem sem qualquer capacidade de raciocínio prévio, movidas que estão por instintos quase animalescos que as compele a atuar mecanicamente, de modo quase sempre contrário ao desejável em uma sociedade civilizada.
Para nos referirmos ao sentido em que o termo é comumente usado, basta lembrar dos casos nos quais ele é chamado a descrever seres humanos: criminosos que vão a estádios de futebol com o único objetivo de brigar e causar confusão, são “fanáticos” por seus times. Assim como todos aqueles que não aceitam qualquer tipo de debate ou argumento que diminuam os feitos de “sua” agremiação esportiva. Pessoas que amarram bombas ao corpo e as detonam com o único objetivo de matar outros seres humanos são os “fanáticos” religiosos, terroristas que devem ser perseguidos e eliminados antes que matem mais inocentes. Nas discussões políticas absolutamente nada racionais e muito pouco civilizadas a que tivemos o desprazer de assistir nos últimos meses, “fanático” é sempre aquele que se recusa a aceitar fatos supostamente incontestáveis, aquele que se recusa a pensar, aquele que aceita acriticamente o que é dito sem verificar sua veracidade através de uma análise mais cuidadosa. Fanático é, obviamente, sempre o outro, sempre o defensor da outra agremiação esportiva, seguidor da outra religião, defensor do outro partido. Nunca sou eu. Porque eu sou racional; sou civilizado; sou inteligente. Todos os que não concordam com meus argumentos são… fanáticos!
Mas aqueles homens e mulheres que pegaram em armas em 1912 não eram apenas fanáticos, de acordo com a simples sentença acima transcrita. Eles provocaram o morticínio que os vitimou “do nada”. Ou seja, sem qualquer razão. Sem qualquer motivo. Aparentemente porque simplesmente “queriam destruir tudo”, “afastar os investidores de nossa região” e, durante o processo, morrer! Constatação que, fácil compreender, apenas reforça o tom pejorativo já anunciado com o uso do termo “fanáticos” para os definir. Esqueça que estas pessoas moravam há anos, por vezes décadas, em nossa região sem serem incomodadas, até que um belo dia uma pessoa lhes bateu à porta com um documento assinado, com um monte de termos jurídicos para elas incompreensíveis, e lhes informou que elas teriam poucos dias – por vezes poucas horas – para deixarem suas casas antes de serem despejadas à força. Ou então que elas para cá se mudaram em busca de emprego e sob a promessa de que, uma vez terminado seu serviço, receberiam o necessário auxílio para voltarem às suas regiões de origem, apenas para serem despedidas e deixadas à própria sorte em uma terra estranha, lhes restando apenas buscar um pedaço de terra que garantisse seu sustento. Foram cerca de oito mil pessoas nesta situação. As quais, após se estabelecerem e iniciarem sua nova vida, também receberam a fatídica visita de um funcionário bem vestido da Lumber, acompanhados por outros bem armados pela mesma companhia. “Ou saem daqui, ou morrem!” A frase está transcrita em um documento de época. Fácil concluir, portanto, que essas pessoas “fanáticas” não pegaram em armas tão “do nada” assim.
E quanto aos investidores, pobres vítimas da inesperada e injustificada explosão de violência ocorrida no vale do rio Iguaçu? Tiveram que deixar de investir na região, segundo nosso amigo. Quase proibidos de fazer o bem que estavam inclinados a fazer. Pobres almas caridosas! Tratavam-se, na verdade, de proprietários rurais que jamais haviam visitado as fazendas que afirmavam possuir e que, muitas vezes, sequer sabiam que estas mesmas terras a eles doadas pelo governo do Paraná, por exemplo, já havia sido doado a outra pessoa pelo governo de Santa Catarina. E, mais grave, que ficaram assustados quando descobriram que nestas propriedades dúbias moravam famílias inteiras, dezenas de pessoas cuja existência desconheciam completamente, assim como desconheciam a extensão e as características de suas pretensas propriedades. E que se revoltaram quando descobriram que as mesmas terras que imaginavam suas, mas que possuíam ao menos outro dono legal e dezenas de posseiros reais, haviam sido concedidas pelo governo federal a um grupo de investidores estrangeiros, Percival Farquhar à frente.
Aliás, o que falar de Farquhar? Personagem no mínimo controverso, teve uma trajetória bastante questionável até se tornar mentor de um conglomerado financeiro de Toronto, cidade canadense escolhida para sediar a companhia como forma de driblar as mais estritas leis estadunidenses. Iniciou sua riqueza no Caribe, onde criou um império de transportes e infra estrutura baseado no monopólio e na eliminação de concorrentes por métodos nada ortodoxos. Chegou ao Brasil através da aquisição da Light and Power do Rio de Janeiro, empresa que por décadas não foi exatamente alvo de amor dos cariocas. Após chegar a São Paulo, onde se apoderou das principais companhias ferroviárias do país, rapidamente partiu para o sul, onde também se tornou senhor de toda a malha ferroviária já construída. Os documentos de época são eloquentes acerca de sua atuação: poucos investimentos, muitas exigências do poder público, táticas empresariais pouco recomendáveis, baseadas na distribuição farta de rendimentos, na corrupção e em eliminação por vezes física dos rivais. Métodos que apenas poderiam resultar a falência de sua holding, o que de fato ocorreu já no final da década de 1910. Falência que, é possível antecipar, talvez tenha sido provocada pelos fanáticos injustos, de acordo com a sentença de nosso amigo mantido anônimo.
O Contestado ainda é um conflito que provoca controvérsia, exatamente por não ter sido, ainda, plenamente compreendido. Chega a ser assustador que frases como a que motivou este texto ainda sejam ditas, e que as pessoas o façam sem se dar conta do absurdo de seu pensamento. É necessário conhecer melhor o que ocorreu em nossas terras naqueles anos conturbados, até para entender nossa própria realidade atual, herdeira que é daqueles fatos. Tentarei contribuir com o atendimento desta necessidade nas próximas semanas, quando analisarei brevemente alguns pontos desta guerra brutal. Até lá!
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