Histórias incontáveis, o rato.
No final da década de 1950, quando ainda morávamos na rua Prudente de Morais em Porto União, cursava o primeiro ano do científico no Colégio Estadual Túlio de França no período noturno, porquanto inexistia curso de segundo grau diurno, exceção ao magistério frequentado quase que exclusivamente por moçoilas.
No entardecer de dia de primavera, o sol mergulhando por detrás da serra, além do Iguaçu, deixando rastro luminoso avermelhado colorindo as poucas nuvens que enfeitavam o céu azul de matizes variadas, tomava cautelas para assistir aulas a seguir, à noite. Entre outras, estava a de organizar o material escolar que levaria à escola e sempre estavam dispersos por todas as partes, em todos os cantos, desafiando o mais arguto de achá-los.
A indumentária para a ida à escola já estava incorporada: sapatos limpos, engraxados, lustrados; calças bem vincadas; camisa e paletó, este essencial, vista que obrigatório para a frequência às aulas; e o indefectível material escolar.
Por razão desconhecida, talvez providencial, ainda em casa abri a porta da dispensa que ficava anexa à cozinha e percebi mais do que vi, um pequeno camundongo entre a lataria de condimentos e outros materiais de consumo alimentar. Vi e estalou uma brilhante ideia na mente: levar junto o infeliz camundongo às aulas. Por que, para quê, não sabia, na ida haveria de imaginar…
Lá estava o camundongo num canto da dispensa, por detrás de algumas latas. Ato contínuo a caça. Removidos os obstáculos, encolhido no canto, observava-me, dentes arreganhados. Achei-o até mesmo prepotente, pois eu, enorme humano, frente a minúsculo e quase indefeso ratinho: esse deveria se entregar sem qualquer resistência dada a desigualdade de forças. Ledo engano. Afastados os obstáculos, movimento rápido, capturado o ratinho com a mão e aquele mordendo a mão que o capturou. Nem a mão soltou o rato; nem o rato soltou a mão. Foram longos momentos para comprovar quem era quem; doeu e muito a mordida, somente soltou quando o depositei no fundo do bolso do paletó, lá permaneceu quieto enquanto fomos à escola.
No Túlio de França, quando se entra no edifício pela porta da frente, a sala da 1.ª Série B do Científico, era a última do corredor à esquerda do pavimento inferior, próxima à porta lateral do edifício que dava acesso ao pátio que não era aberta para o trânsito de alunos, e outra que ficava à frente da porta da sala e que, ao tempo, mais a frente estava a Cantina.
Antes do início das aulas, quase a totalidade dos alunos haviam chegado, inclusive as moçoilas que frequentavam o curso, tive a não menos “brilhante ideia” de soltar o camundongo na sala, que trazia no bolso do paletó, claro, próximo ao grupo de moças.
Entre pensar e agir foi espaço de tempo praticamente inexistente. Solto o rato ao chão, descoberto pelas moças, gritos, choro, pedidos de socorro, correria de todos para todos os lados, poucos sabiam o que estava acontecendo, carteiras e cadeiras eram arremessadas, o barulho era infernal. Aberta a porta da sala, o êxodo ao corredor foi total, não sobrou viva alma dentro da sala, a desordem era completa. Inimaginável a confusão.
Muitos alunos foram à Cantina, local próximo e muito frequentado, inclusive durante o período de aulas. Também fui mesmo porque “desconhecia” a origem dos fatos, sequer havia “participado”.
Com a eclosão do distúrbio motivado pelo “rato”, imediatamente apareceu o saudoso Didi que era o Inspetor de Alunos para por “ordem a casa” e eu na Cantina… Vai daqui, vai de lá, caçado o coitado do valente camundongo, acalmados os ânimos, colocadas as coisas em seus devidos lugares, iniciadas as aulas, e eu na Cantina… quando observei na porta da Cantina, que vigiava sorrateiramente de viés, o resoluto Inspetor de Alunos Didi e que se dirigiu em minha direção, tive certeza: “fui dedurado”!
Didi se encaminhou diretamente, simplesmente disse-me:
– Venha, o “Pixinguinha” quer falar com você.
Fomos. O também saudoso de boas memórias Pixinguinha que então era o Diretor do Colégio Túlio de França, já conhecido de outros eventos, pouco me disse, quase sem olhar:
– Outra vez? Suspenso por três dias.
Estava resolvido o imbróglio, fui à sala de aulas, peguei o material escolar que havia levado, exceção ao rato, fui bater papo no hoje extinto Café Coimbra, local de muitas histórias. Férias em plena primavera.
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