Índios, não: americanos!
Na edição da semana passada iniciamos, neste espaço, uma breve análise de um dos temas mais fascinantes da trajetória histórica de nossas cidades: o início da ocupação humana no vale do rio Iguaçu. Naquela ocasião vimos que esta obra deve ser creditada ao povo caingangue, que aqui estabeleceu os primeiros núcleos habitacionais estáveis há cerca de três mil anos. Informação que contraria frontalmente o senso comum que tende a creditar ora aos caboclos, ora aos imigrantes europeus, o início desta epopeia marcada por inúmeros fatos interessantes e que nos acompanha nos dias atuais.
A simples constatação da surpresa com que meus alunos recebem, em geral, a afirmação acima já merece em si mesma um breve comentário: a maioria das pessoas tende, mesmo que de forma inconsciente, a ignorar os feitos e as heranças deixadas pelos nativos americanos ao traçarem as linhas históricas que as ligam às suas próprias origens. É como se antes do início da ocupação europeia não existisse ninguém morando aqui. Como se o continente americano tivesse como principal característica, nas longas eras que antecederam a chegada de Cristóvão Colombo nos idos de 1492, um absoluto vazio populacional. Deve-se, aliás, a esta ideia o uso da palavra “descobrimento” para designar o ato de chegada dos europeus às nossas terras; descobrimento pressupõe que algo estava “encoberto”, “escondido” ou, em uma variação bastante válida, algo que não existia e passou a existir. Sendo óbvio que não era isto que ocorria neste vasto território, somos colocados frente a frente com um grande e prejudicial mal-entendido com relação aos povos que aqui habitavam antes da chegada das primeiras caravelas espanholas e portuguesas (que, aliás, não foram as primeiras embarcações a chegar no litoral americano – hoje sabemos que vikings e mesmo fenícios já estiveram por aqui muito antes).
Ouso dizer, contudo, que este não é o maior engano que temos de enfrentar quando nos propomos a estudar esta temática. O próprio uso do termo “índio” para nos referir aos povos que então habitavam estas terras constitui um problema de grande magnitude, tão maior quanto mais disseminado é o uso desta palavra. Em primeiro lugar, porque se trata de um conceito cunhado a partir de um mal-entendido monumental, fartamente documentado pelos historiadores ao longo de décadas e, mesmo assim, ainda não abandonado. A história é bastante conhecida: os primeiros europeus, ao chegarem às terras americanas, pensaram inicialmente ter chegado às Índias, região localizada no continente asiático batizada com este nome devido ao fato de ser banhada pelo rio Indo, ainda hoje importante para a cultura de milhões de seres humanos. De fato, o objetivo das aparelhadas expedições que zarpavam dos portos espanhóis e portugueses naquele final de século XV era chegar a esta rica região, aonde teriam oportunidade de adquirir importantes mercadorias a um preço relativamente baixo, criando a oportunidade de revendê-las com avultado lucro nos mercados europeus.
Daí que, àqueles homens e mulheres que vieram recebê-los nas praias do Caribe estes europeus atribuíram o nome “índios”, designação indiretamente referente a um curso d’água localizado a milhares de quilômetros de distância, em uma região amplamente desconhecida por todos os atores deste inusitado encontro. E que, fácil perceber, nada tem a ver com estes povos tão aparentados dos “índios” originais quanto qualquer ser humano pode ser familiar a alguém nascido do outro lado do planeta.
Para além deste engano subsiste ainda outro bastante evidente mas, contudo, teimosamente ignorado por vários estudiosos destes povos. Trata-se do fato de que a aplicação de um termo tão genérico a nações tão díspares entre si (basta pensar nas óbvias diferenças existentes entre os tupis brasileiros, os incas andinos, os mexicas centro-americanos ou os sioux norte americanos, por exemplo) faz com que ignoremos suas características políticas, sociais e culturais únicas, unindo sob uma mesma denominação grupos humanos que possuem muito pouco ou nada em comum. Cria-se assim um estereótipo que nada tem a ver com a realidade, reduzindo a quase nada uma complexidade étnica que poderia, se corretamente considerada, ser extremamente útil para compreendermos a trajetória histórica de todo um imenso e variado continente. Neste sentido, o termo “índios” utilizado para designar tanto o habitante do norte do Canadá quanto do sul da Patagônia simplesmente não explica nada, não diz coisa alguma. É preciso tomar os povos nativos da América como o que realmente são: nações diferenciadas com características próprias, dotadas de trajetórias únicas e com organizações político-sociais complexas.
Apenas deste modo poderemos compreender toda a riqueza da história caingangue, um povo dotado de uma diversidade tal que os permitiu ocupar áreas tão diferentes quanto podem ser o vale do rio São Francisco e as matas de araucária que circundavam o traçado do Iguaçu, estabelecendo contatos pacíficos ou belicosos com grupos não menos heterogêneos e complexos. Nada pode ser mais distante desta nação quanto o senso comum do indígena caçador-coletor habitante de núcleos diminutos e dotado de uma organização social rudimentar. Quando falamos dos caingangues tratamos de um povo altivo capaz de conquistas assombrosas, como a ocupação ininterrupta de um grande território ao longo de quase três milênios através da resistência a ataques repetidos de inimigos variados e a alterações ambientais e climáticas que certamente teriam colocado o homem moderno em sérias dificuldades.
É preciso considerá-los, portanto, como o que verdadeiramente são, e não como os “índios” que nos foram apresentados durante a infância e que, de resto, correspondem a uma quantidade verdadeiramente pequena de povos americanos. Apenas assim poderemos compreender seus feitos e sua história na sua devida dimensão, considerando-os justamente como os primeiros antepassados dos habitantes destas terras e devotando-lhes, em consequência, o respeito e admiração de que são merecedores. Até a próxima!
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