Inovação abandonada
Nossa conversa de hoje não começa com um lindo dia de sol, como em outras semanas, mas sim com uma antiga reportagem veiculada no Jornal Nacional. Na verdade, não tão antiga assim… o vídeo hoje facilmente encontrado no YouTube pode ser facilmente datado como sendo de algum momento entre o segundo semestre de 1994 e o início de 1995. A outrora famosa apresentadora do telejornalismo brasileiro (e que, confesso, não sei por onde anda hoje, afastado que estou do telejornalismo brasileiro) apresenta com um sorriso no rosto uma novidade tecnológica que há pouco havia sido inaugurada em União da Vitória: um curioso ônibus que chamava a atenção por suas características única, que o faziam ser observado por “cerca de trinta cidades do Brasil e do mundo”. Era deste modo apresentado a milhões de pessoas, no telejornal de maior audiência nacional, o BisBus, projeto pioneiro de nossas cidades que encurtava radicalmente o tempo de viagem entre São Cristóvão e o centro da cidade e, ao faze-lo, prometia apresentar soluções inovadoras e viáveis para os transportes urbanos mundo afora.
O mecanismo, de fato, chama a atenção. Mediante o acionamento de um pequeno painel eletrônico um sistema hidráulico baixa o eixo dotado com as rodas ferroviárias que, corretamente assentada sobre os trilhos, permite ao engenhoso veículo movimentar-se a uma razoável velocidade – cinquenta quilômetros por hora – sobre a ferrovia que, “subutilizada”, naqueles não tão recuados tempos “recebia apenas uma viagem de trem de carga por dia” (quem me dera…) O ônibus, de fato, chama a atenção pelo desenho futurista, que o coloca bastante à frente dos outros veículos do tipo existentes em meados da década de 1990. Lembro claramente de, nessa época, passar grande parte de meus dias dentro de ônibus feios e antigos da linda São José do Rio Preto, localizada no interior de São Paulo, onde eu então vivia e deles dependia para me deslocar para a escola, para a casa dos amigos e para o recém inaugurado shopping center. Não resta dúvida de que eu adoraria ter podido andar em um ônibus tão bonito e tão moderno naquela época, e resta menos dúvidas ainda de que uma solução como essa, na Rio Preto de minha infância, certamente teria diminuído enormemente os conflitos entre a crescente cidade e os trilhos da ferrovia araraquarense que a atravessam em diversas localidades da malha urbana, inclusive em seu centro comercial e histórico.
Pois bem. Pouco mais de vinte e dois anos passados, eis que me encontro dentro do terreno de uma afastada empresa de extração e beneficiamento de areia de nossas cidades, em um belo dia de sol (sim, aproveito os dias de sol para passear de moto e buscar por pontos e relíquias históricas de nossas cidades, daí minha constante referência a esta condição climática) com o icônico BisBus à minha frente. O sentimento poderia ser de maravilhamento e admiração. Certamente eu desejaria, fossem outros os tempos, passear no interior do simpático e inovador veículo. Mas hoje várias impossibilidades impedem tais sentimentos. A impossibilidade da falta de rodas, que certamente impedem o veículo e sair do lugar com seus próprios meios (hoje ele conta com apenas um pneu instalado). A impossibilidade provocada por vinte anos de completo abandono em condições deploráveis, deixado sob constante sol e chuva, que deixaram o veículo completamente desprovido da grandiosidade de outrora. A impossibilidade provocada pela estranhável ausência de todo o sistema hidráulico relacionado ao sistema de tração ferroviário, certamente caro como todo projeto piloto costuma ser, e suficientemente interessante para chamar a atenção de todo um país – e de quem mais teve acesso ao veículo ao longo das últimas duas décadas. A impossibilidade provocada pelo desgaste de um motor ainda existente (isso sim é de maravilhar!) mas certamente imprestável não pelo excesso de uso, mas sim por sua completa ausência.
Em suma, a felicidade que poderia advir do encontro com um documento tão importante de nossa história recente se transformou em profunda melancolia por sua situação dramática. A continuar onde está, nas condições em que está, o BisBus com suas placas atestadoras de sua inigualável novidade (trata-se do modelo 01 da série 01/01 de sua própria linha – constituída, até onde sei, apenas por ele!) em breve deixará de existir. Assim como a locomotiva 310 que, também abandonada, sofre a ação do tempo e de vândalos na estação de nossas cidades, preservada apenas por sua importância enquanto cartão postal de toda a comunidade. É preciso salva-la o quanto antes de seu inevitável fim. Ainda é possível restaurá-la (ainda que com dificuldade e com o dispêndio de numerosos recursos) e transformá-la no ícone do renascimento turístico de nossa região. Porque sua importância para a história da tecnologia no país é inegável. Sua centralidade para a história ferroviária é fora de questão. A grandeza de sua posição na história de nossas cidades dispensa qualquer argumentação. Seu abandono é o abandono de toda a nossa memória. Oxalá um dia possamos passear em seu interior, escoltando a fumacenta locomotiva que por tantos anos serviu à nossa gente por sobre os trilhos que outrora foram a causa de nossa prosperidade. Ainda há tempo. Mas ele é escasso. É preciso agir o quanto antes, caso contrário em breve lamentaremos que “já é tarde demais”. Até a próxima!
Leave a comment