JOYCE E A PATERNIDADE
“a paternidade é uma ficção legal” dizia Joyce. É curioso que este tema seja recorrente em sua obra, o próprio Bloom é um homem de família, eu ideal dele. No outro lado Dedalus, personagem autobiográfico que, nesses termos, seria o ideal do eu. É que eles representariam dois lados da mesma moeda revelando as facetas do próprio Joyce. Pode-se, a esse respeito consultar sua biografia, Bloom é um homem dedicado à sua mulher, dentre suas características e as do próprio Joyce pode-se destacar, por exemplo, seu ciúmes anacrônico: ele fazia sua mulher listar todos os homens que o antecederam, tal como à Sra Bloom; e seu inusitado hábito de dormirem cada um com os pés na cara do outro; a de considerar-se um homem feminino, depois de uma certa pressão por parte de outras personagens ele admite: eu quero ser mãe! Seu finíssimo bom humor realça suas atitudes perante a vida, passava fome antes de seu reconhecimento, emprestava dinheiro costumeiramente, nada o abalava. Certa vez em companhia de alguns senhores assustou-se com um trovão, o senhor não reage bem aos trovões, disse o cavalheiro, Joyce respondeu, não, eu tenho medo mesmo. E o trovão aparece em Finnegans Wake no modo de uma palavra indecifrada de duas linhas. E nesse livro, que se traduziu por Finnicius Revém, temos a significativa sigla HCE (traduzida por o homem a caminho está) cujo lugar é a todo tempo reocupado pelas mais variadas personagens. Há algo nele de inapreensível, tal como vemos ressurgir sob a interrogação do pai. O pai de Joyce era um senhor bastante excêntrico, dava apelidos a todo mundo que conhecia em Dublin, era um contador de histórias, com um humor sardônico. Joyce dizia que toda sua obra era uma figura escarrada dele, bem como, com ele rivalizava: não importa o quanto esta história seja bem contada, meu pai diria que eu não contei tão bem quanto ele contaria. Joyce significa alegre, ele gostava da surpresa do nome Freud significar a mesma coisa. Freud por outro lado era neurótico, escreveu a Interpretação dos Sonhos como resposta ao luto à morte de seu pai, e nunca foi capaz de entrar no cemitério onde ele jazia. Teve mesmo que criar um mito em Totem e Tabu para mantê-lo vivo (o pai, conceito) onde representava o único homem não castrado, pai da horda primeva adaptado de Darwin, mas servindo à lógica da castração, ao “ao menos um não castrado”. Seu último trabalho retoma o tema, sob título de Moisés e o Monoteísmo. Eis seu sintoma, por trás de toda interrogação freudiana está a pergunta: o que é um pai? Mas Joyce não era neurótico. Ele eleva o significante à condição de significar a si mesmo, o que rompe com o modo metafórico da construção neurótica. Todo o texto de Finnegans Wake encontra-se em cada parte dele. É como se onde nós instalamos um significante mestre (que chamamos pai) fosse a cada passo novamente concretizado, ocasionando a perca do sentido no mesmo movimento em que o inventa. Embora tenhamos elementos analisáveis em sua escrita ele está muito além desse campo, Joyce nos fornece a alucinação. Por isso ninguém o compreende, tenta-se pegar o rastro do sentido quando o próprio significante fala. E ele fala (leia em voz alta – o Joyce não eu) independentemente disso, toca diretamente na estrutura que nos constitui linguajeiros, sentimos perfeitamente a fragilidade da realidade, quando ele fala de sono nos dá sono, ainda que não compreendamos bem do que ele fala. Joyce recoloca seu discurso no lugar onde está o significante que organiza a todos, ele escreve a partir daquilo que organiza a linguagem, ele escreve antes da linguagem. Mas o faz com ela, no exato lugar onde ela encontra o gozo e onde nós gozamos sem saber. Se Freud não pôde em definitivo dizer o que é um pai, Joyce não fez menos, ele o fez em cada palavra sua. Eles tinham também em comum o sinthoma.
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