Lembranças.
No fim da década de mil novecentos e cinqüenta, quando ainda trafegavam as locomotivas a vapor, as “Marias Fumaça”, nós morávamos no alto da rua 7 de Setembro nesta cidade de Porto União, quando época de férias escolares, íamos de trem à casa dos avós materno que moravam em Poço Preto.
Era um evento esperado com ansiedade.
No dia anterior à “viagem” eram feitos os preparativos. A bagagem era muita e diversificada, havia de tudo, desde os equipamentos para eventuais pescarias, bolas, chuteiras, uma parafernália inútil que pouco, ou quase nada, era utilizada, somente servia para esgotar de cansaço os viajantes que deveriam levá-la até a estação ferroviária e que não era próxima.
Nada desanimava os viajantes, não seria o peso da bagagem desmedida a ser transportada a pé por aproximado quilômetro, de madrugada, que iria arrefecer o entusiasmo.
Nas férias escolares do meio do ano, mês de junho, normalmente frio, clareia o dia mais tarde. O trem que utilizávamos partia da estação férrea com destino a São Francisco do Sul às seis horas da manhã. O retorno era previsto às vinte e uma horas e vinte minutos, jamais chegou no horário, somente partia. Chamavam os usuários a composição de “bananeiro” porque era nela que os ferroviários traziam cachos de bananas de Corupá, cidade situada no pé da Serra, até hoje grande exportadora de bananas.
A nossa viagem de trem era até Poço Preto apenas, pequeno vila às margens da ferrovia que liga a Canoinhas, a Mafra, daí a São Francisco do Sul, importante porto marítimo naquele tempo, era uma aventura inesquecível em especial as do meio do ano. As manhãs de junho eram frias, geladas. Era normal a formação de geadas e a visão da janela do vagão de passageiros quando a composição tracionada pela locomotiva a vapor vencia a distância em “louca disparada”, cerca de quarenta quilômetros/hora, soltando grossa coluna de fumaça preta e fagulhas, atravessava campos brancos, encobertos de geada. O amanhecer do dia acontecia durante a viagem e o sol tímido, frio, cautelosamente clareava a natureza decorada com a geada e, a névoa que se desprendia do solo, produzia esmaecidos arcos Iris em face da refração da luz solar. Era um espetáculo que nunca cansei de apreciar.
As janelas dos vagões de passageiros não havia quem ousasse abrir, primeiro pelo frio do inverno, depois pela fumaça desprendida da chaminé da locomotiva que empesteava a tudo e a todos. Os vagões de passageiros eram naqueles dias de duas classes: de primeira e de segunda. O de segunda classe que a passagem era mais barata, os bancos eram de madeira, duros, sem nenhum conforto. Os de primeira classe eram estofados, confortáveis. A grande maioria dos viajantes preferia os vagões de segunda classe e, para obterem algum conforto, se utilizavam de cobertores, travesseiros, muitos meios para forrar os bancos e amenizar o desconforto da viagem. Nós, eu e meu irmão, depois que o Chefe de Trem passava pelos vagões conferindo e picotando as passagens, invariavelmente saíamos do vagão de segunda classe e íamos para o de primeira que normalmente havia poucos passageiros e nele terminávamos a viagem. Saudades daquele tempo, era uma aventura.
A chegada em Poço Preto, prevista, era para as sete horas, raramente era pontual, sempre com pequenos atrasos. Não importava o atraso, a alegria da chegada sobressaia, era exultante. A mais disso sabíamos que o leite tirado da vaca, espumoso, estava aguardando para ser apreciado. Não bastasse isso, o cheiro do café passado no momento, o pão caseiro com manteiga e mel, era algo de derreter qualquer gelo, inolvidável. E dia após dia, todas as manhãs durante as férias, sabíamos que iria se repetir: leite tirado na hora, espumoso, café, pão com manteiga e mel.
Mas as férias também terminam. A volta com o fantasma do retorno às aulas, na escura estação de Poço Preto (luz elétrica nem pensar, quando muito a luz bruxuleante de lampião a querosene), aguardávamos a chegada do “bananeiro”.
Distante, na entrada da vila de Poço Preto, atendendo a sinalização existente, o maquinista quebrando o silêncio da noite acionava o apito do trem. Acredito que os maquinistas das “Marias Fumaça” gostavam de apitar avisando a chegada porque alguns mais do que outros, manejando com maestria o apito floreavam e quebravam a quietude com todos os tipos de notas musicais. Era um espetáculo soberbo. E a locomotiva à frente da composição, noite escura com farol iluminando os trilhos, apitando, para emoldurar a imagem, pela chaminé soltava chuva de fagulhas. Quem pode esquecer?
O retorno era triste. Os vagões de passageiros sempre bem iluminados internamente eram deprimentes. Nada se podia enxergar, mesmo que houvesse luar, pois as imagens se sucediam sem significado, apenas imagens confusas. Algum alento sentíamos quando ao longe víamos, bem para lá dos campos agora sem vida, as bruxuleantes luzes da cidade que na época eram poucas e fracas, quase iguais uma pequena brasa. Mas era a cidade e o maquinista em tempo oportuno para gaudio de todos, demonstrava a aptidão para extrair sons os mais variados do apito da “Maria Fumaça”.
A chegada na estação ferroviária era atribulada. Tira bagagem de toda a espécie dos vagões. A locomotiva parada, resfolegando. Carregadores de malas ofertando serviços. Corre corre interminável. Gritos, choro de criança pequena no colo da mãe, som de apito do Chefe de Estação, balburdia interminável. Se fomos com muita bagagem, no retorno era muito mais. Estava a bagagem recheada de presentes da avó: bolos, pães, queijos, salames, infindáveis iguarias. Agora era abraçar a bagagem e rumo à casa que, além de ser longe, havia a subida da 7 de Setembro que parecia infinita, sem fim.
As férias de junho fluíram, a expectativa agora era para as de dezembro, de final de ano. O trem, a composição tracionada pela “Maria Fumaça”, estaria aguardando na estação ferroviária. Logo haveria nova viagem e tudo haveria de recomeçar. Doces lembranças, que saudades.
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