Mini mini tratado de estética do belo
Proposição: O que é belo é simplesmente aquilo que se mostra no lugar que seria de outra coisa. Postulado: Implica na suposição de haver ali uma metáfora, e mais especialmente ainda, uma metáfora de coisa alguma.
O belo remonta assim ao vazio central em sua conjunção ao seu representante estético, naquilo que vela ao mostrar-se denuncia sua possibilidade significante, o objeto belo ganha atributo na medida em que substitui outra coisa, seja ela desordenada e angustiante, ou inominada e desconhecida, por algo sublime, e que guarda alguma relação com o que vem a substituir. O belo torna-se belo por pôr-se em lugar de algo originariamente indizível ou repulsivo, e a medida de distância que se toma entre isso, e o que toma o seu lugar, é o próprio fazer artístico. A beleza é efeito, portanto, de uma restauração mais ou menos velada, de uma injunção suportável e à distância naquilo que representa indiretamente uma sensação, forma, ou insistência do que é, a priori, rechaçável, seja do ponto de visto do desprazer sensível, seja do ponto de visto do caos sonoro/fônico, seja do ponto de vista erótico, que conjuga a excitação e a descarga dela num mesmo objeto. A noção de beleza se converte assim como tal por um enozamento de contrários, o que se repete com regularidade na arte medieval, especialmente quando trata de temas divinos. Eles ganham beleza justamente por encobrir com sua exposição algo da ordem de um terror, de um assassinato, de um incesto, e mais precisamente pela possibilidade de alguma coisa desse campo ter sido impedida naquele momento em que é captada pela arte.
O Belo na Música: Embora se conheça alguma associação entre a frequência de notas e determinadas sensações é possível reconhecer imediatamente que tais frequências dependem em grande parte do contexto onde se inserem. Assim a tonalidade de uma música e o seu contexto sonoro não podem ser desconsiderados jamais, isto se aplica à afinação. Ocorre por exemplo da melodia, de saída, surpreender o ouvinte. As duas primeiras notas de Chopin em sua clássica Noturno Op.9 n.2 o demonstram notavelmente. Do sol médio até o si bemol da segunda oitava há uma infinidade de possibilidades, mas este intervalo entre as duas notas se realiza no si justamente porque imprime o fim da tensão promovida pelo sol anterior, e que dura, é verdade, menos de um segundo. Mas note-se que esse sol desperta toda a carga emocional que se conjuga no si bemol seguinte, e que dá ao si a solução para o que o artista compactou naquele simples sol médio. Assim a beleza da música já é reconhecida logo na segunda nota, justamente quando acorda em si o desfecho inicial daquela primeira tensão. Em casos extremos, por exemplo, quando se encontra beleza em música mais ruidosa e pesada, deve-se reconhecer que o processo é simplesmente abreviado, ao invés de encobri-lo ele é exaltado, como se fôssemos assim poupados do trabalho secundário e expostos ao cru, à matéria bruta. A beleza está justamente em não encobrir algo que teria um valor de verdade.
O Belo na Literatura: O princípio segundo o qual a beleza é um efeito estético e linguístico sustenta-se também no fato de que são caracterizados como belos sempre os grandes desfechos, as grandes soluções, e não os grandes inícios (salvo se eles guardarem relação prévia conhecida, obviamente). Quanto a isto (o que bem se aplica aos poemas) deve-se levar em conta também outros aspectos, à frente discutidos. No entanto, é por basear-se numa expectativa que é despertada no leitor que um desfecho, ainda que momentâneo, ganha beleza. Tomemos o exemplo de Ulysses, quando Stephen bêbado é amparado por Bloom e resmunga alguma coisa, Bloom ouve ali o nome de uma mulher amada por Stephen, ao mesmo tempo em que lembra de seu filho morto (o que remete à mulher que seu filho amaria caso fosse vivo) mas na verdade era apenas Stephen chamando um cachorro. Joyce embeleza a própria suposição de beleza nesse gesto.
No que concerne aos poemas aplicam-se-lhes também a já distância que há entre a linguagem usual, simplesmente pelo seu ritmo, rima, sentido, e o emprego da palavra em sua potência criativa, o que por si só já a separa radicalmente do uso comum. Logo o princípio de substituição da cadeia falada por outra ritmada já pressupõe uma língua tosca, sem cor, esvaziada e mecânica por outra oposta, suntuosa, melíflua, encantadora.
O belo na pintura: Assim como o aprazível remete ao que oculta, a forma se converte em agradável quando alude ao ideal. Do mesmo modo que a intuição geométrica procura preencher as faltas em proveito de uma forma matematicamente perfeita, também o reconhecimento de tais formas obrigam a arte a renovar-se. De modo que a desvelada forma ganha relevância ao olhar, e assim dá lugar ao fundo como o que se opõe ao reconhecível. Esta aparente dicotomia tanto mais desperta o interesse do olhar quanto mais for capaz de jogar com as impossibilidades e as imprevisibilidades. Como a tendência é a de remontar uma imagem à sua forma ideal, a distância entre elas preserva assim o insolúvel, obrigando o olhar a decidir, e nesta decisão há uma projeção. Tomemos A Noite estrelada de Van Gogh, ali a imagem parece estar em movimento, dando justamente esta impressão de que é esta indecisão entre figura e fundo, apagando a sobreposição, o que nos capta como olhar.
O belo na arquitetura e na escultura: O mesmo princípio decerto se aplica aqui, uma vez que a renovação artística tende a inovar as formas clássicas e a restaurar ao mesmo tempo uma relação diversa com a exatidão, com a economia, e com a função do espaço. Muito embora o belo seja invocado quando se reproduz um busto com exatidão, são os traços mais singulares do artista as marcas de uma escolha de via tomada. Privilegia-se mais a percepção do artista em referência a algo que tem percepção comum, do que a reprodução fiel. Ou então, que dessa reprodução sobressaiam-se características peculiares, ou que não teriam lugar ali. Quanto as formas de utilização do espaço por meio da arquitetura não se excluem jamais a grandeza, a ordem e simetria, mas elas são questionadas quando se dá maior lugar ao próprio espaço, na medida em que é curvo, e que parece ser ele próprio o que esculpe a matéria. Esta inversão obriga a percepção da matéria a curvar-se a do espaço, uma metáfora concreta.
O belo na erótica: Talvez em nenhum outro ponto se tenha uma gama tão grande de noções e preferências quanto ao belo do que na esfera sexual. As culturas e os tempos indicam claramente que os critérios de beleza são mutáveis e definidos por processos complexos simbólicos. De sapatos a bonecas, pantufas e cadáveres, o desejo sexual encontra os mais variados objetos. Mas talvez encontremos algo de comum em todos os casos, é a atribuição de desejável ao objeto. Como a estrutura da fantasia é moldada em relação à preferência sexual, é justamente na suposição de desejável, do ponto de vista do objeto, que o sujeito pode retirar dele satisfação. Na dialética do desejo é o sujeito quem torna-se desejável para o objeto, quando o supõe desejável, portanto, em todos os casos, há um funcionamento narcísico. O objeto torna-se belo, assim, em última análise, num emanamento, por tornar belo o sujeito. Some-se a isso todas as suposições e inversões de sensações e sentimentos a que uma relação fantasiosa pode gerar e teremos a suposição do desejo no outro como causa do desejo do sujeito. A beleza atribuída ao objeto sensual é exaltada pelo retorno imaginário da beleza.
Leave a comment