Ninguém nasce homem nem mulher
Sim. Ao contrário de um discurso e de uma vontade que quer que ele seja verdade a sexualidade é muito mais complexa que o aparelho anatômico. Quase todos nascem com um órgão que mais tarde estará apto à reprodução, se tudo correr bem no desenvolvimento biológico. Mas isso também pode não ocorrer. Afinal ninguém está obrigado, graças aos céus, a reproduzir-se indefinidamente. Quando nascemos com um aparelho próprio ao desenvolvimento sexual secundário, somos identificados num gênero sexual, masculino ou feminino, que funciona em relação ao nome que recebemos como um indicador, mas, por conta da cultura onde somos nomeados esse gênero traz consigo toda uma gama de representações, de costumes simbólicos, que implicam na significação de cada um dos gêneros. Obviamente, estas representações são variáveis dependendo da cultura e do tempo. Assim o significado, mais ou menos vago, para todos, em geral, do que é ser homem ou mulher, se redimensiona numa trama bastante complexa, histórica, discursiva, passível de jogos de poder, onde determinado organismo anatômico busca adequar-se enquanto se desenvolve àquela cultura. Mas ele não se desenvolve apenas na direção da maturação sexual fisiológica, ele também passa a compreender que a erótica perpassa um campo bastante amplo, que envolve temáticas diversas, valores, princípios, moral, etc. O desejo sexual orientado para a reprodução é apenas um resultado de uma educação moral, pois ninguém duvida que a sexualidade sofre os efeitos de uma educação, de um recalcamento, que ocasionam as inibições próprias àquela cultura; mas também, muitas vezes, constituem-se em inibições e sintomas indesejáveis para o próprio sujeito. É justamente por conta dessa polimorfia da sexualidade que um sujeito pode casar-se com uma menina de 12 anos enquanto que em outra cultura isto seja um crime. A questão, para continuarmos, não se prende apenas à moralidade. Como a sexualidade não serve apenas à reprodução, e portanto, contraria um argumento à favor da heteronormatividade, pois ela já se manifestara tão cedo, na infância, nas descobertas infantis, jogos, excitações, masturbações, e continua durante a puberdade, fase em que os caracteres sexuais secundários desenvolvem-se, ao ponto da maturação sexual, fisiológica. Se levássemos em conta apenas a maturação sexual e seu único fim como reprodução, necessariamente deveríamos considerar que a partir da menarca a menina estaria apta à reprodução, do ponto de vista biológico, o que é obviamente uma afronta à moral de nossa sociedade. Então a sexualidade não se presta somente à reprodução. Logo ela se exerce em práticas que não a visam, mas que procuram, de modo mais geral, obter prazer. Assim o desejo sexual se manifesta frequentemente pela atração por algum objeto, podendo ser esse objeto aceitável ou não, do ponto de vista legal, moral, enfim. Mas note-se que são as práticas discursivas culturais que estabelecem que tipo de objeto serve ou não deve servir à satisfação. Então, além da sexualidade não servir exclusivamente à reprodução, ela também não goza de um único objeto. Por isso, ela pode satisfazer-se relacionando-se com as mais variadas preferências: o fetiche é o mais claro exemplo disso. Assim o desejo sexual responde a uma dialética em que o objeto figura de modo a proporcionar a atração do sujeito, não havendo, portanto, um único objeto, mas ao contrário, uma gama de modalidades sexuais deveras ampla. O que obriga a admitir que a sexualidade não se limita a pares de opostos ou complementares, mas à procura de prazer, em relação a uma preferência que parece tomar a frente das outras. Isto nos leva à constituição de uma identidade sexual, que obrigatoriamente se forma em referência às exclusões que realiza, às partes que recalca. Portanto, além de não existir um objeto natural, institual, para a sexualidade humana, não há também qualquer natureza na identidade, mas construções. Desse modo, a que se devem as preferências? Preferimos recolocar a pergunta assim: a que se devem as interdições? Pois se há interdição, há desejo. Portanto, há maneiras de gozar que diferem. O que leva, por fim, a um tipo de gozo, igualmente sexual, mas que não se limita, ele também, ao ato, que é o gozo moral. E que não deixa de ser, quando desnudo, uma profunda revelação do íntimo do falante.
Psicólogo clínico, especialista em Teoria Psicanalítica e em Neuropsicologia. Atende em Caçador e União da Vitória. giuliano.metelski@gmail.com
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