Nova Galícia, velhas histórias – II
Pode soar estranho aos olhos dos queridos leitores que me leem neste momento, dados o modo como nos acostumamos a enxergar o mundo e os lugares que aprendemos a tomar como exemplo para nosso próprio país, mas o fato é que durante grande parte do século XIX a Europa não era um bom lugar para se viver. Na verdade, nem como destino turístico a região possuía muitas atratividades, até porque turismo não era uma atividade econômica significativa então. De fato, o período foi marcado por crises sérias que colocaram em risco a própria sobrevivência de milhões de europeus, levando a uma emigração sem precedentes que acabou por ser a responsável pelo povoamento de largas regiões do globo. Sim, emigração, processo de fuga de grandes populações de um território, e não imigração como a que vemos hoje, na qual milhões de pessoas fogem de várias regiões do mundo tentando entrar no continente europeu. Pois é, a história muitas vezes nos oferece surpresas que nos permitem refletir e, mais interessante ainda, estranhar e problematizar coisas que nos acostumamos a tomar como naturais, quase atemporais.
Apenas para citar alguns exemplos ilustrativos do que escrevo. Portugal atravessou, durante os oitocentos, um dos períodos mais conturbados de sua longa trajetória. Abandonado pela família real em 1808, o país mergulhou em uma grave crise social e econômica que disseminou a fome e a comoção social por todo o país, em um processo que culminou com a ruptura política do Brasil, em 1822, e com décadas de escassez e tentativas de reconstrução durante o restante do século. A proclamação da república portuguesa em 1910, ao colocar fim a séculos de regime monárquico naquele país foi apenas mais uma tentativa de sanar dificuldades persistentes que, em larga medida, ainda hoje afligem aquela sociedade. De fato, não devia ser fácil viver em Portugal durante estes duros anos. Para os que lá nasciam, certamente a mudança para países de futuro mais promissor aparecia como uma alternativa bastante atrativa. O mesmo vale para a Itália. Hoje considerado um dos países mais ricos do mundo, o fato é que a península itálica atravessou sucessivas crises, guerras e comoções sociais ao longo do século XIX. O ano de 1848 foi particularmente destrutivo para toda a região, marcado que foi por um levante popular de grandes proporções seguido de uma cruel repressão por parte dos governos constituídos. Propriedades rurais eram sumariamente desapropriadas e condensadas em grandes latifúndios com a finalidade de “aumentar a competitividade econômica” da agricultura italiana, e milhares de pessoas eram obrigadas a abandonar seu modo de vida rural e se mudar para as cidades, onde teriam de aprender a trabalhar em indústrias que impunham um novo modo de vida, horários fixos, muito trabalho (até dezesseis horas por dia, em muitos casos), baixos salários e nenhum direito. Durante as décadas de 1860 e 1870 a situação se tornou ainda mais grave com os graves conflitos que levaram à unificação de todos os numerosos Estados então existentes na região em um único país, este que conhecemos hoje e que tem na Scuderia Ferrari seu maior símbolo. Expulsos de sua terra, obrigados a aderir a um modo de vida que não era o seu e correndo o risco iminente de serem convocados para uma guerra que simplesmente não lhes dizia respeito, era óbvio para milhões de italianos que o melhor era sair de seu país em busca do sonho de reconstruir a vida em uma terra distante e mais pacífica.
O mesmo vale para os alemães, os quais passaram por processos muito parecidos no mesmo período, com o agravante da existência de governos militares. Foram inúmeras as propriedades familiares seculares desapropriadas naquela região para que a industrialização ali se instalasse, foram incontáveis as famílias que perderam tudo o que possuíam em nome do projeto de criação de uma economia pujante baseada em mão de obra barata e abundante. Durante a década de 1870 também foram várias as guerras nas quais os príncipes alemães se envolveram, até que a moderna Alemanha fosse formalmente constituída, em 1871. Durante o processo a emigração foi maciça, impulsionada por um contexto de carestia poucas vezes igualado ao longo da rica história da Europa ocidental. Se, hoje, a Alemanha parece um sonho para vários emigrantes que buscam desesperadamente condições de sobrevivência, durante estes duros anos o processo foi inverso, ainda que dotado de crueldade igual ou maior que a atual. E o que falar da Polônia, região tantas vezes invadida e retalhada por vizinhos militarizados, cobiçosos de suas riquezas naturais? E da Ucrânia, país ainda hoje dividido entre o ideal de uma independência efetiva e a dura realidade de uma incômoda vizinhança com a eternamente inquieta potência russa? E da Inglaterra, país que não enfrentava conflitos internacionais em seu território mas passava pelo mais intenso processo de desapropriação e proletarização de sua população, pelo menos desde o século XVIII? Para todos estes povos a fuga era a melhor solução. E o Brasil oferecia atrativos não desprezíveis e promessas grandiosas de um futuro mais digno e, sobretudo, pacífico.
É neste ponto que Nova Galícia volta à nossa coluna, em continuação à nossa conversa da semana passada. Isto porque foi precisamente neste local que, no início do século XX, às margens da estação de mesmo nome da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, o governo paranaense instalou famílias de imigrantes europeus desejosas de terras e das condições necessárias para reconstruir suas vidas. Servidos por uma ferrovia que lhes permitiria escoar sua produção para mercados distantes, favorecidos por todo o conforto possibilitado por este moderno meio de transporte (tais como correios tão rápidos quanto poderiam ser na época, telégrafo, composições diárias estacionadas à porta de suas casas) e por incentivos governamentais para a compra de sementes, ferramentas e para a construção de suas casas, a colônia localizada em terras outrora indígenas prosperou rapidamente, a ponto de sua população adquirir proporções consideráveis o suficiente para ser referida nos relatórios oferecidos pelo governo estadual à câmara dos deputados localizada no Rio de Janeiro, então capital da república. A produção crescia a níveis satisfatórios, prometendo um futuro brilhante para aquelas pessoas que há apenas poucos anos haviam perdido tudo o que possuíam. A vida parecia, finalmente, sorrir para estes intrépidos imigrantes. Mas a mesma história que ensina também carrega consigo marcas de uma ironia fina poucas vezes perceptível. E em pouco tempo as nuvens voltariam a se apresentar turvadas no horizonte. E as razões para a tempestade próxima seriam as mesmas que já havia conturbado suas vidas em um passado recente.
A questão é que Nova Galícia se localizava em uma região conhecida como “contestado”. Sim, eu sei, todos os leitores conhecem o termo e sabem o que significa, mas se coloquem no lugar daqueles imigrantes recém chegados a terras brasileiras, vindos da conturbada e velha Europa. Eles haviam sido instalados pelo próprio governo brasileiro em terras que, imaginavam, seria incontestavelmente deles doravante. Não lhes passava pela cabeça a possibilidade de estarem sendo favorecidos pelo mesmo processo de expropriação de que haviam sido vítimas na pátria distante. Muito possivelmente sequer imaginavam que naquelas terras e em muitas outras localizadas na região moradores de longa data estavam sendo expulsos sumariamente e em grande número por capangas armados da Brazil Railway e da Lumber, empresas do conglomerado de Percival Farquhar que baseavam seus lucros na exploração da madeira e na venda de lotes agrários a recém chegados imigrantes, como eles. Quase certamente foram tomados pela surpresa e pelo terror quando receberam as primeiras notícias do início de um confronto armado de grandes proporções em região tão próxima à sua, certos que estavam de que a guerra havia ficado para trás, e de que nunca mais precisariam temer o som de estampidos e explosões. É quase possível compartilhar o sentimento que os assaltou quando foram obrigados, mais uma vez, a fugir das casas e terras que imaginavam suas, e quando ficaram sabendo da destruição de sua próspera colônia por pessoas que, como eles, haviam sofrido violências variadas mas, ao contrário deles, haviam decidido resistir com armas na mão.
A Nova Galícia dos ataques indígenas, do futuro promissor, agora jazia em chamas apenas alguns meses após receber a ilustre visita de Theodore Roosevelt, ex-presidente estadunidense que adorava aventuras e, em nome deste gosto, realizava visitas por locais que muitos de seus compatriotas sequer consideravam conhecer pessoalmente. Roosevelt desembarcaria na estação e deixar-se-ia fotografar várias vezes em 1913, apenas alguns anos antes de morrer por complicações que, muitos dizem, foram provocadas por séria doença contraída em terras brasileiras. Juntamente com a fumaça lançada ao ar pelas labaredas que consumiram casas e plantações desaparecia a experiência de povoamento que, talvez seja justo dizer, mais próximo havia chegado de ser considerada bem sucedida. Nova Galícia nunca mais voltaria aos seus tempos de esplendor. O que seria das atuais ruínas caso o curso da história tivesse seguido para outras direções é impossível dizer. Mas sua existência nos oferece mais um precioso exemplo de que nossas decisões tomadas hoje constroem o mundo no qual viveremos amanhã. A ferrovia hoje jaz abandonada, enquanto milhares morrem todos os anos nas rodovias de todo o Brasil. Precisaria ser assim? Talvez Nova Galícia possa oferecer algumas respostas interessantes a quem se propor a refletir honestamente sobre sua trajetória histórica. Até a próxima!
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