O ato e a cura, e seu avesso
Ainda não vou comentar as manifestações, receio ser pauta de mais de uma coluna. De outro turno tenho a obrigação profissional de tomar partido contrário à aprovação pela Comissão de Direitos Humanos do projeto ‘cura gay’. Outro tema é a aprovação pelo Senado do ‘ato médico’. As duas decisões são extremamente retrógradas. O ato médico, por exemplo, estabelece uma hierarquia de profissões ligadas à saúde radicalmente oposta à autonomia profissional, nele o diagnóstico e a prescrição terapêutica tornam-se prática exclusiva do médico. Não afeta somente os profissionais, você leitor, sentirá no bolso, e os laboratórios também. Isso pra não prever a obviedade da patologização crescente daí decorrente, que aliás, já assistimos. Pra ainda não computar o aumento previsível de falhas diagnósticas. Pra não indicar por ora, as indicações terapêuticas prescritas mais ou menos padronizadas, em convênio, é possível deduzir. Acompanhe os índices relativos ao uso abusivo de medicamentos nos últimos anos. A paroxetina, por exemplo, tornou-se uma panacéia. Estou triste, paroxetina. Estou alegre, paroxetina. Não consigo dormir, paroxetina. Durmo demais, paroxetina. Pra citar apenas um exemplo. Além disso, supõem-se um saber médico nesse ato capaz de englobar todas as áreas da saúde. Vossa imensidade será capaz de realizar, e além disso indicar, a mais recomendável terapêutica em qualquer caso que envolva o termo diagnóstico. Assim, aquilo que estudamos por cinco anos (pra contar apenas o tempo de formação) e passamos uma vida investigando será dado ao seu carimbo. Curioso haver a necessidade de especializações médicas não é? Mas as prescrições de terapia são mais fantásticas. A paroxetina, pra retomar, ‘comprovadamente’ incapaz de causar dependência já me trouxe pacientes completamente dependentes dela. Mas é psicológica, podem dizer, não faz mal. É tradição médica apropriar-se de tudo o que puder ampliar seu campo, foi assim inclusive com a psicanálise, hoje eles já não a vêem com bons olhos (leva tempo não é). Em contrapartida, a cognitivo comportamental requer uma consulta mais rápida (a seu ver) e é, obviamente mais fácil de aprender e aplicar. Um curso de fim de semana ou meia dúzia de livros, um amigo psiquiatra, um convênio clínico, uma inflação do suposto saber, um acordo laboratorial, uma oligarquia terapêutica, um bicho de sete cabeças. Enfim, o futuro prescreverá a igualitária tendência libertária cada vez mais restrita. Ao mesmo tempo em que a população vai à rua manifestando seu repúdio sem a necessidade de líderes, pinta um (eles têm) que pretende representar a Ordem Natural das Coisas, Pêniciano, adorador da Palavra, busca nesse ato regulamentar a sexualidade. Em oposição ao que determina o Conselho Federal de Psicologia. Na França há pouco tempo tentaram derrubar a psicanálise nos atendimentos públicos (alguma semelhança?) uma resposta foi essa: “Sim, o Senhor vai decretar o fim do inconsciente”. Sei que os psicólogos não se submeterão a tão lamentável absurdo, “agora cure, agora não, agora isso, agora aquilo” estão acostumados a reconhecer na demanda de um o desejo do Outro, sabem que a formação reativa aí manifesta o desejo homossexual reprimido do opressor, não são pretensiosos quanto ao desejo, que sabem, é indestrutível, não vêem a sexualidade unicamente com propósitos biológicos, não se incomodam quanto à escolha de objeto do sujeito, não farão julgamentos morais, não contribuirão pra alienação massiva, e quando alguém for-lhes encaminhado pra atendimento farão valer seu desejo. Quem sabe a singularidade ainda encontre um lugar, nem que falte lugar na calçada. Todos comentam que as manifestações não têm Um propósito, nem lideranças, nem partidos. Estamos diante de uma nova configuração política. Mas o que ninguém comentou ainda, e cumpre a mesma função, é que todos têm um alvo.
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