O encontro do Brasil consigo mesmo
Caros leitores. Confesso que, ao buscar definir qual seria o tema desta nossa conversa, quase sem perceber me encontrei frente a um dilema de não pequenas proporções. Como é do conhecimento de todos aqueles que dedicam generosamente alguns minutos de sua semana lendo estas linhas, quando concebi esta coluna o fiz com o objetivo principal de auxiliar, dentro de minhas óbvias limitações, toda uma população que tão calorosamente me recebeu há pouco mais de um ano a compreender seu presente, utilizando como ferramenta para isso o conhecimento de seu passado. Adotei, naquela ocasião, o pressuposto segundo o qual jamais conseguiremos entender nossa atual posição no mundo sem tomar contato com nossa trajetória, seja esta tomada em sentido individual, grupal ou social. Assim como ninguém consegue explicar satisfatoriamente suas escolhas presentes e seus projetos de futuro sem recorrer à sua própria formação, entendia eu que também nossa sociedade necessitava de tal exercício para melhor conhecer suas fraquezas e suas virtudes, buscando atuar, a partir daí, da melhor maneira possível para melhorar-se continuamente garantindo, desta forma, um futuro muito melhor para nós e nossos descendentes.
O problema é que, ciente deste objetivo e sabedor de que as análises aqui veiculadas precisam versar, preferencialmente, sobre temas históricos, eis que me vi na contingência de atender a um impulso irresistível para tratar de um assunto mais do que atual. Um tema que possui também suas raízes na história de nosso país, mas que por se encontrar tão profundamente arraigado e difuso no solo fértil de nossa identidade nacional se tornou difícil de visualizar, complicado de identificar, trabalhoso de explicar e quase impossível de compreender. Algo que nos acompanha desde “sabe lá quando” (nem mesmo os pesquisadores mais determinados conseguem atingir uma unanimidade quanto a sua data de nascimento – se é que se pode dizer que algo tão profundo tenha nascido em algum momento, ao invés de ter existido “desde quando o mundo é mundo”, para citar uma expressão comum aos mais antigos). E que, entretanto, é atual. Incrivelmente atual. Assustadoramente atual.
Imagino que os amigos que tiveram a bondade de me acompanhar até aqui já possam estar impacientes neste momento. “Mas, afinal, de que tema este sujeito está falando?” Para aqueles que já estiverem formulando esta pergunta, peço encarecidamente que se acalmem e, se a impaciência realmente for muito grande, abandonem esta leitura. Porque eu simplesmente não sei, e vai aqui mais uma confissão bastante sincera, explicá-lo. Não sei sequer por qual nome chamá-lo. Meus dezesseis anos de estudo quase ininterrupto da história nacional simplesmente não foram suficientes, ainda, para me permitir avançar qualquer tipo de análise científica (portanto imparcial) sobre ele. Entretanto confesso, tomado de indizível surpresa, (sim, já estamos na terceira confissão!) que este assunto me assombra. Me inquieta. Me emociona. Quase me paralisa.
De fato, minha ausência neste jornal na última semana se explica por minha completa incapacidade de lidar de modo minimamente neutro com o elemento histórico mais atual do país. Este para o qual não consigo oferecer nome, nem explicação, nem imparcialidade. Mas que permite que seres humanos escolhidos para representar minha nação venham a público decidir o futuro de milhões de pessoas em nome de suas esposas, filhos, pais, mães, avós, famílias inteiras, deuses, religiões. Não apenas votar em nome dessas pessoas, mas tentar fazer com que uma criança o faça. Que faz com que políticos os quais – seria de imaginar-se – deveriam saber como atuar no parlamento brasileiro justifiquem sua posição com relação a um processo de responsabilidade administrativa argumentando com a não construção de uma usina, com os buracos de uma estrada. Não que estes problemas não existam. Eles existem e são graves. Mas não é preciso conhecer as centenas de artigos da Constituição federal para concluir com muita facilidade que uma coisa, neste caso, absolutamente nada tem a ver com a outra.
Mas tem mais. Fui paralisado na última semana pela constatação de que as impolutas consciências que gritavam a plenos pulmões pela defesa da ética, da honestidade, do combate à corrupção, da reconstrução do país possuem trajetórias capazes de envergonhar o mais polêmico galã dos contos de Nélson Rodrigues. Como não ficar boquiaberto vendo um Paulo Maluf, um Eduardo Cunha, um Miguel Haddad (conhecida figura política de Jundiaí, onde morei por quase vinte anos) apresentarem-se como defensores da moral e dos bons costumes? Que dizer de alguém que defende, em cadeia nacional de televisão e mediante amplíssima cobertura da internet, a tortura institucionalizada pelo DOI-CODI nos sombrios anos da ditadura civil-militar, que demonstra inegável orgulho ao fazê-lo e que, minutos depois, ofende um colega parlamentar com palavras de baixo calão e ofensas impronunciáveis de cunho homofóbico? Isso tudo, não esqueçamos, no espaço projetado para servir de palco de atuação da representação da sociedade brasileira. E o deputado pernambucano que votou contra o impeachment em nome de uma dinastia atuante já nos tempos do Império, quando seus antepassados mataram e morreram no movimento que entrou para a posteridade com o nome de Revolução Praieira? Como explicá-lo?
Tudo em nome da mudança. Sempre em defesa da esperança. Porque é preciso construir o novo, abandonar o passado. É preciso “virar a página da história” e iniciar uma nova, na qual o desenvolvimento seja a pedra de toque e a justiça econômica e social seja o mantra entoado por todos. Porque é preciso permitir que, mais uma vez, a história se faça presente entre nós, travestida de futuro promissor. É preciso que erros sejam repetidos para que tudo se acerte. É preciso abrir caminho para que a múmia milenar, com roupas reluzentes e maquiagem retocada, possa dançar, deslumbrante, sua valsa de debutante inédita, porém repetida ao longo de séculos de trajetória da nacionalidade brasileira. Não, caros leitores, a história não se repete! São os homens que insistem em repetir a incompreensível alquimia que permite trazer de volta à vida sombras e fantasmas que se imaginavam já exorcizados. É a mudança sempre chegando para deixar tudo igual. É a esperança se renovando sobre os mesmos vícios. São os nomes se reinventando para continuarem os mesmos.
Desculpem, prezados amigos, mas hoje não sei se escrevi sobre história ou sobre atualidade. Só sei que não consigo lidar bem, nestes dias, nem com um nem com outro. E sei também que o futuro nunca se pareceu tanto com o passado. Dois tempos que se fundem em um presente conturbado, no qual não sabemos bem em que época estamos, e no qual o Brasil profundo se encontra consigo mesmo, revigorado por vícios seculares. Que venha o porvir! E que nós, historiadores, voltemos a ser capazes de visualizá-lo, identificá-lo, compreendê-lo e explicá-lo, de modo imparcial e científico. Até a próxima!
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