O fantasma que nos assombra desde longe II
Caros leitores. Na semana passada comecei a comentar aqui em nosso espaço sobre um fantasma que assombra nossa sociedade desde há muito tempo, e que insiste em reaparecer nos mais diversos contextos e lugares de nosso imenso país: o racismo. Travestido de preconceitos variados apresentados com ares de senso comum, formulados com o objetivo de desvalorizar grupos étnico-sociais pretensamente “diferentes” e incapazes de atender aos requisitos de nossa sociedade civilizada, trata-se de um problema que mancha nossa trajetória enquanto nação há séculos, e que urge seja combatido com coragem e determinação o quanto antes, para que não continue a produzir vítimas indefesas e desigualdades inaceitáveis neste alvorecer de século XXI.
No desenvolvimento de minha argumentação, comentei com vocês que, se o racismo permanece como uma chaga grave de nossa convivência social, se esconde, durante a maior parte do tempo, atrás de uma ideia mais ou menos generalizada que baseia em valores como a cordialidade, a hospitalidade, a tolerância e o bom humor um comportamento que atravessaria todos os extratos sociais de um povo gigante em suas dimensões e múltiplo em suas experiências e trajetórias. Criou-se deste modo uma imagem ideal segundo a qual não existiriam divisões nem embates internos à sociedade brasileira, apresentada sem maiores rodeios como um modelo a ser seguido por outros povos do mundo (automaticamente apresentados como “violentos”, “intolerantes”, capazes de atos que seriam impensáveis em nosso meio), e na qual características brutais como o racismo surgem apenas como desvios lamentáveis, indignos por isso de maior estudo ou mesmo atenção.
Não que nosso povo não seja conhecido, mesmo internacionalmente, por sua hospitalidade e bom humor. Não estou tentando negar estes traços que também caracterizam nossa identidade nacional. Mas o reconhecimento deste fato não pode ser utilizado como biombo para ocultar a existência de fraturas graves como o racismo, sem dúvida alguma merecedora de uma atenção que, infelizmente, continua a ser negada por vários dos responsáveis por pensar nossa realidade e propor soluções para nossos problemas. Mas, afinal, de onde vem esta tendência em diminuir a importância de algo tão sério? Qual a origem deste mito segundo o qual a convivência racial em nosso país é plenamente harmônica e desprovida de embates, garantidora de uma igualdade étnica que insiste em permanecer válida apenas nos discursos que simplificam a realidade e nas campanhas publicitárias (quase todas devidamente desprovidas de atores e atrizes descendentes de linhagens afro-descendentes)?
A busca para a resposta desta pergunta configura uma preocupação de grande envergadura também nos meios acadêmicos, nos quais pesquisadores das mais diversas áreas das ciências humanas seguem debatendo sem conseguir alcançar um consenso. Existe, contudo, a compreensão de que um grande clássico de nossa literatura científica contribuiu poderosamente para a construção desta ideia. Trata-se do grande Casa grande & senzala, obra indispensável para todo e qualquer pesquisador das humanidades publicado por Gilberto Freyre nos idos de 1933.
Entre várias teses consagradas e fundamentais para a compreensão da lógica que rege nossa sociedade, Freyre formulou a ideia segundo a qual uma das principais características formativas da nacionalidade brasileira foi a convivência entre as diversas raças ocorrida nos séculos iniciais de nossa trajetória histórica. Desta convivência, forçada pela empresa colonial portuguesa e por seus objetivos de lucro, teria se originado um ambiente social único e complexo, marcado por interações culturais até então inéditas porque levadas a efeito por “raças” (este é o termo utilizado por este autor, mais recentemente abandonado em favor da ideia de “etnia”) que jamais haviam estabelecido contato até então. Deste contato, destas interações, não surge na tese de Gilberto Freyre o atrito, a violência, a exploração de uma mão de obra concebida e adquirida como objeto colocado a serviço de seus proprietários. Surge, para surpresa geral e maravilhamento de muitos, a harmonia, a solidariedade, a convivência pacífica.
Aqui reside a grande questão. A exploração de nativos e africanos dá origem nesta linha de pensamento ao abrandamento dos costumes portugueses, formados por séculos de lutas na arena europeia. Hábitos carinhosos como o uso de palavras no diminutivo (“mamãe”, “paizinho”, “queridinha”), o carinho da ama-de-leite no trato com o “filho da sinhá”, termos como “bombom”, “bumbum”, surgem como frutos naturais do trato escravista violento, impositivo, da tomada de terras habitadas até então por gerações de povos nativos subitamente despojados de suas raízes. A equação pode parecer estranha nos dias de hoje, mas nos anos 1930 e 1940 abriram espaço para a construção da “democracia racial” brasileira, apresentada brevemente no início destas linhas e surpreendentes o bastante para atrair a atenção de pesquisadores estrangeiros interessados em compreender a singular alquimia capaz de criar semelhante maravilha em nossa sociedade. Estes vieram, observaram, estudaram e se foram. Alguns reproduziram o conceito. Outros começaram a criticá-lo. E desse processo de questionamento surgiram as questões por mim apresentadas brevemente hoje e na semana passada.
Reitero que não se trata, aqui, de um esforço para desvalorizar nosso povo ou nossa sociedade. Não tenho como objetivo diminuir nossas qualidades ou negar nossas virtudes enquanto povo. Mas é importante compreender corretamente o processo que nos originou e as consequências que este nos legou, para que possamos entender melhor nossos problemas e propor as melhores soluções para resolvê-los. No que tange à questão do racismo, estas soluções não são simples nem de fácil aplicação. Algumas coisas, entretanto, já podem começar a ser aplicadas, e sobre elas falaremos brevemente na semana que vem. Até lá.
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