O Leitor que lute
“Escrevo-vos uma longa carta porque não tenho tempo de escrevê-la breve” Voltaire
No mar de aforismos de autoria incerta, dizem as más línguas que Voltaire teria escrito a declaração acima. Mesmo em dúvida da autoria, uma coisa é certa: a honestidade precisa e oportuna dessa epígrafe alegra o coração de revisores e de simples leitores que já se depararam com o obscurantismo textual. Se você nunca se deparou com esse incômodo, cuidado. Talvez você seja o produtor de textos obscuros e não tenha percebido, afinal, em tempos de comunicação na ponta dos dedos, quase todos se tornaram produtores constantes de textos escritos.
Um texto obscuro é isto: um labirinto sombrio e desinteressante. Rebuscamento, preciosismo na escolha das palavras, frases muito (muito) longas e parágrafos cansativos desprezam a comunicação eficaz e colocam o pobre leitor dentro desse labirinto de jargões, frases confusas, expressões desencontradas que dizem muito pouco ou nada. Para o desespero do leitor, geralmente, o texto obscuro, além de modorrento, é extenso.
Se, por acaso, você estiver associando o texto obscuro ao campo literário, calma. Estou me referindo aqui aos textos de cunho utilitário e prático, que se diferem muito dos textos literários, que não têm como função principal informar. Mesmo neles, o obscurantismo é também um obstáculo desagradável. Por mais paradoxal que pareça, o habitat natural do obscurantismo textual tem sido o campo dos textos técnicos, nos quais termos muito específicos são colocados em frases embaralhadas, que tornam a informação inacessível – não pelo desconhecimento do leitor em relação ao léxico, mas, na maioria dos casos, pela máxima do escritor: “o leitor que lute”.
É imperioso reconhecer que escrever é uma atividade laboriosa e que exige o acionamento de muitos processos psicológicos (memória, volição, isto é, vontade consciente, vocabulário, domínio de um código, reconhecimento dos instrumentos de escrita e por aí vai). Ou seja, não podemos desprezar a dificuldade do ato de escrever. Assim, ficam perdoados aqueles que escrevem de maneira obscura por inépcia ou por falta de consciência da própria escrita. Damos uma colher de chá também para aqueles que estão em fase de aprendizagem da escrita. Porém, aqueles que escrevem com obscurantismo por vontade própria e consciência precisam rever essa cuestão, tá oquei?
O obscurantismo geralmente é utilizado propositalmente ou por necessidade de deixar o texto mais rebuscado, motivados pela ilusão do escritor de que assim o texto ficará mais interessante; ou por uma tentativa de enganar o leitor. Sim senhores, é aquela máxima: se não puder convencê-los, confunda-os. Nesse intento, são inseridos os jargões como: “outrossim, é importante lembrar”; “no tocante a esse assunto é importante dizer que estaremos trabalhando nisso”; palavras como outrora e demasiadamente caem de paraquedas em frases sem pé e nem cabeça.
Retomando a epígrafe, um texto mais econômico em palavras, porém com maior potência de informações requer tempo, maturação e compromisso para com quem lê. O empenho em dificultar o entendimento ou em preencher lacunas com expressões prontas e pouco informativas, muitas vezes, é uma armadura para esconder aquilo que nos falta para dizer. João Cabral de Melo Neto, avesso aos obscurantismos de cada dia, teceu “escrever é estar no extremo de si mesmo, e quem está assim se exercendo nessa nudez, a mais nua que há, tem pudor que os outros vejam o que deve haver de esgar (…)”. A única maneira, portanto, de se livrar do obscurantismo é sendo colaborativo com o leitor e tendo propriedade sobre o que se diz. Aceitar tambémque escrever é se expor de muitas maneiras e que o embaralhamento de palavras revela mais do que esconde – por isso Voltaire nem tentou esconder que a extensão da sua carta derivaria da sua falta de tempo. Um abraço e até a próxima.
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