O mito de que “saudade” só existe na língua portuguesa
Quem já não ouviu dizer que a palavra saudade não existe em outra língua, apenas na língua portuguesa? Osvaldo Orico afirmou em sua obra A Saudade Brasileira (1948) que “[n]enhuma palavra traduz satisfatoriamente o amálgama de sentimentos que é a saudade. Seria preciso nos outros países a elaboração de um conceito que também amalgamasse um mundo de sentimentos em apenas um termo.”Baseados nessa crença os brasileiros exibem a palavra mundo afora como se fora um troféu. A afirmação de que outras línguas não possuem um substantivo que se traduz como saudade, no entanto, é um mito, porém com um fundo de verdade. O fato é que ela é uma das palavras mais difíceis de traduzir. Outras línguas possuem termos para expressar o sentimento, mas muitas vezes não o fazem exatamente da mesma maneira.
Há quem defenda, porém sem sucesso, que o termo tem origem na língua árabe, originando-se do termo negro do árabe clássico, que corresponde, entre outros nomes, a “humor negro, hipocondria, melancolia”. O mais provável, no entanto, é que sua origem seja latina. No Dicionário Genealógico Latino-Português de Vitalino Cesca podemos ler que o termo saudade vem do latim solitate, “isolamento, solidão, desamparo, abandono”. Disso resultam alguns dos significados da palavra saudade: “desejo de um bem do qual se está privado”; “lembrança nostálgica, e ao mesmo tempo suave, de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a vê-las ou possuí-las”.
Através das formas soidade e suidade(séc. XIII – D. Dinis), soedade(séc. XV – Alfonso Alvares) e suydades(séc. XVI – Gil Vicente), chegou até o que conhecemos porsaudade na atualidade: “Sentimento melancólico causado pela ausência ou pelo desaparecimento de pessoas ou coisas a que se estava afetivamente muito ligado, pelo afastamento de um lugar ou de uma época, ou pela privação de experiências agradáveis vividas anteriormente.” (Infopédia)
O que é interessante observar é que solitate significa, na origem, solidão, e que enquanto esse sentido foi mantido em outras línguas (castelhano: soledad, italiano: solitudine, francês: solitude), em português alterou-se substancialmente. Enquanto o espanhol soledade o catalão soledat, bem como o alemão Heimwehe o inglês homesickness, aproximam-se mais da “vontade de voltar ao lar, nostalgia de casa”, na língua portuguesa ampliou-se o sentido do termo a outras situações, como por exemplo um familiar, um amigo, um objeto.E o mesmo aconteceu com o termo galego, soidade, e com o termo romeno, dor, o que comprova que a língua portuguesa não é a única que possui um substantivo que expressa as implicações e matizes da nossa saudade.
Talvez não possuam a mesma abrangência do termo em português as palavras Sehnsucht, do alemão, e tesknota, do polonês, mas são também substantivos que se traduzem como “saudade”. Para expressar o mesmo que o substantivo saudade em nossa língua, como na frase “Tenho saudade de você”, muitas outras línguas utilizam-se de expressões verbais: Te extrañono castelhano; Ichvermissedich no alemão; I miss you no inglês; Tu me manque, no francês.
Origem e sentido esclarecidos, resta-nos ainda compreender o número: Saudade ou saudades? É possível quantificar esse substantivo abstrato? É certo que comumente também quantificamos “ciúmes” e “felicidades”. Utilizando a forma plural de substantivos que a priori não são enumeráveis, realizamos uma expansão semântica das palavras. Apesar de não haver consenso entre linguistas sobre a correção dessas formas de plural, seu uso não é necessariamente ruim; significa que a língua está, como sempre, se modificando. Foi o que aconteceu com as palavras “parabém” e “pêsame”, que hoje em dia utilizamos apenas no plural.
A saudade é um dos termos mais presentes na poesia de amor na língua portuguesa; com o apelo da sua suave nostalgia e grata lembrança, finalizo este texto emprestando a sensibilidade de Mário Quintana, em seu poema “Saudade”:
Na solidão na penumbra do amanhecer.
Via você na noite, nas estrelas, nos planetas,
Nos mares, no brilho do sol e no anoitecer.
Via você no ontem, no hoje, no amanhã…
Mas não via você no momento.
Que saudade…
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