O monumento e o sorriso do professor – Reedição
João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque foi uma figura importante em sua época, mas esteve longe de figurar entre os principais nomes brasileiros do início do século XX. Nascido na vila de Umbuzeiro, Paraíba, em 1878 – ainda sob o regime monárquico, portanto – formou-se advogado, e se valendo do parentesco com o presidente Epitácio Pessoa (1919-1922), de quem era sobrinho, rapidamente passou a ocupar cargos importantes, principalmente da área militar. Foi assim que se tornou auditor geral da Marinha, ministro da Junta de Justiça Militar e ministro do Supremo Tribunal Militar, antes de se tornar presidente (o equivalente, à época, de nosso atual cargo de governador) da Paraíba, em 1928. Uma vez tendo ingressado na política, sua atuação foi marcada pela oposição à oligarquia cafeeira paulista então dominante no cenário nacional, derivando desta postura a redação do famoso telegrama “Nego”, no qual ele negou o apoio de seu Estado à candidatura de Júlio Prestes (então apoiado pelo presidente Washington Luís) forjando aquele que viria a se tornar o lema da atual bandeira paraibana, e seu alinhamento a Getúlio Vargas na chapa que buscaria derrotar o status quo nas eleições presidenciais de 1o de março de 1930.
Acontece que, de atuação nem sempre pacificadora, João Pessoa havia conquistado várias inimizades na Paraíba, muitas delas provocadas por seu modo, digamos, pouco ortodoxo de lidar com seus adversários. Foi assim que caiu em desgraça com João Duarte Dantas, jornalista, adversário de longa data que teve sua casa invadida por policiais supostamente a mando de João Pessoa. Invasão de residências por policiais não era, exatamente, algo incomum durante os tumultuados anos da República Velha, principalmente nas regiões mais distantes do país nas quais nem sempre os ritos processuais legais eram observados com o sigilo que seria desejável. O que particularmente desgostou Dantas foi o fato de que, durante a invasão, documentos pessoais seus acabaram sendo levados pelos “agentes da lei”, dentre os quais figuravam cartas íntimas trocadas com a professora e poetisa Anaíde Beiriz, as quais seriam devidamente publicadas nos principais jornais da região com o objetivo de ferir a honra dos envolvidos. A vingança não tardaria, e se concretizaria com um tiro à queima roupa no peito de João Pessoa dentro da confeitaria A Glória, em Recife, no dia 26 de julho de 1930, matando-o instantaneamente. João Duarte Dantas seria preso e, posteriormente, encontrado degolado em sua cela. Anaíde Beiriz poucos dias depois também seria encontrada morta, supostamente após ter cometido suicídio por envenenamento.
Três mortes que bem poderiam dar origem a um filme de grande sucesso, mas que nos dizem muito sobre as origens da política brasileira republicana e acabaram servindo como catalizadores do intenso movimento que culminaria na chamada Revolução de 1930, em outubro daquele ano. Como se vê, a trajetória de João Pessoa nada tem a ver, diretamente, com Porto União da Vitória. Na verdade ele nunca passou por aqui, e é de se duvidar que sequer soubesse da existência deste remoto povoado localizado na divisa dos sertões do Paraná e de Santa Catarina, no coração da temida área “contestada”. Entretanto seu nome ecoa forte em nossas cidades, e a recuperação do monumento erigido em sua memória, naquele turbulento início da Era Vargas, representa um acontecimento digno de aplausos de todos aqueles que se preocupam com a preservação a história de nossa gente. O grandioso “Monumento a João Pessoa” está de volta à margem do Iguaçu, em local bem próximo àquele no qual foi originalmente construído em 1931, após passar anos escondido e depredado na confluência das ruas José Boiteux e Coronel Amazonas.
Logo que me mudei para cá, no início de 2015, e iniciei minhas leituras sobre as origens das cidades que tão bem me acolheram na ocasião, tive a felicidade de rapidamente deparar com o livro do professor Cordovan Melo Júnior, “Porto União da Vitória – um rio em minha vida”. Nele foi possível entrar em contato pela primeira vez com fatos importantes de nossa história, e entre eles a inauguração do imponente monumento não podia passar despercebido aos meus olhos. Citando o importante trabalho de Lili Matzembacher sobre os marcos históricos das cidades, sua descrição me impressionou: “o monumento era todo em cimento, e a alegoria de remate do mesmo material colorido, imitando bronze. O Anjo da Vitória possuía um metro e sessenta e cinco centímetros de altura e levava em uma das mãos uma coroa e, na outra, um facho de luz vermelha, símbolo da Revolução e servindo, também, como farol para as embarcações do rio Iguaçu. O capitel possuía 90 centímetros de altura. A coluna, quatro metros de altura por sessenta centímetros de diâmetro na parte inferior. A base tinha 50 centímetros de altura; a escadaria 54 centímetros, o pedestal 2 metros e 80 centímetros. A altura total do monumento, que possuía iluminação elétrica, era de 10 metros e 39 centímetros.”
Abaixo da detalhada descrição, fotos mostravam um monumento estilo “obelisco”, cercado por moradores em sua inauguração. Me pareceu belíssimo! Sem dúvida um marco importante para uma cidade que contava, então, com seis mil habitantes, subindo a vinte e cinco mil o total do município. Conhecido através das páginas do ótimo livro do professor Cordovan, restava apenas buscar fazer o que qualquer um faria na minha situação: vê-lo pessoalmente. Acreditei que a missão seria simples. Afinal, um monumento de mais de dez metros de altura não costuma passar despercebido em lugar nenhum do mundo! Me pus a procurar mas, para meu espanto, não o encontrei. Lembro aos queridos leitores que eu acabara de chegar a poucas semanas, ainda não conhecia o nome de nenhuma rua, não sabia nenhum ponto de referência, de modo que só me restava perguntar aos transeuntes que, solícitos, me indicaram a direção. E lá fui eu: “agora vou encontrar! Ele é grande, não tem como não achar!” E nada… Onde estaria o grande monumento? Eu não acreditava que tivesse passado por algo tão grande sem notá-lo! Certamente não estava procurando direito e… parei! Olhei com mais cuidado e, não acreditando no que enxergava, parei o carro e desci. Eu o havia encontrado, mas não acreditava. Começava a desejar intimamente que não o tivesse feito.
Lá estava o monumento, pela metade, sem o pedestal, sem a estátua de bronze, com fios de eletricidade passando acima, calçamento quebrado abaixo, enegrecido pela ação do tempo e pela falta de cuidado, no centro de uma rotatória mal sinalizada. Ali estava o imponente monumento a um dos mais importantes acontecimentos políticos da História do Brasil. A decepção não poderia ser maior. Lamentei a sorte de tão bela homenagem, cujas dimensões talvez ultrapassassem a grandeza da figura homenageada. Ali estava a obra de arte planejada pelo engenheiro Carlos Conti e executada pelos escultores Carlos Wagenführ e Henrique Raid (dados já então assimilados das lições escritas pelo professor Cordovan). Ou pelo menos a ruína, o que restara dela… Fiquei entristecido. Meditei sobre a falta de cuidado de toda a nação com sua memória. Lembrei de tantos fatos históricos passados que muito poderiam ensinar a nossos contemporâneos, e que poderiam colaborar para que erros grosseiros já cometidos voltassem a ser cometidos. Pensei sobre a necessidade de colaborar para para que não fossem esquecidos – e pela primeira vez considerei a possibilidade de escrever esta coluna. Voltei para casa. O passeio havia acabado. Havia descoberto que minha nova cidade não devotava à sua história importância especial. Em breve aquele resto de monumento não existiria mais.
Confesso que há alguns dias, quando passei pela dita rotatória e não vi lá os restos do pedestal (me acostumei a olhar pelo menos de relance para ele todos os dias, no caminho para o trabalho), acreditei que minha profecia havia se realizado. Era óbvio que algo tão decrépito e mal cuidado não poderia sobreviver muito mais tempo. Não dei maior importância ao fato e segui meu caminho, esquecendo rapidamente o assunto. Foi quando recebi de uma de minhas alunas, exatamente ontem, a mensagem que me surpreendeu: o monumento a João Pessoa vive! A imagem comprovava o fato! O Anjo da Vitória, exatamente tal qual descrito por Lili Matzembacher e citado pelo professor Cordovan lá está, em bronze, em toda a sua glória, em seu lugar original (ou, melhor, muito próximo a ele). Claro que eu precisei comprovar com meus próprios olhos! O resultado é a foto que ilustra este texto. Grande, imponente, o obelisco voltou a enfeitar nossas cidades. Só posso agradecer a todos os envolvidos na restauração o presente que me ofereceram sem o saber. Graças a eles posso contemplar, agora, o primeiro marco que conheci nesta região, nas páginas de um bom livro. Graças a eles as revoluções, não a de 1930 mas todas as revoluções, aquelas que buscam construir um mundo melhor, utópico, voltaram a ter um monumento em nossas cidades. Graças a eles hoje posso dizer que moro em um lugar que, sim, valoriza a sua história. A restauração está perfeita. Ainda vou me dirigir à estátua munido de fita métrica para comprovar! Mas à fidelidade às fotos é assustadora! A todos os envolvidos, meu muito obrigado! Vocês conseguiram fazer este professor de História sorrir! Até a próxima!
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