O narcisismo na função do eu
Entrou em casa e pendurou a pele que usava, por baixo disso sua nudez o que era? Ninguém seria capaz de reconhecer em meio a alguns potes aquele que seria seu coração, seu pulmão ou seu baço. Todos são iguais, de cor semelhante, tamanho aproximado, cheiro de tripa. Sequer o próprio sangue é distinguível dos demais a olho nu. Você não conhece seu corpo, apenas essa capa que ensaca ossos e músculos, impedindo-os de saltar para fora e espatifar-se no chão. Ali naquele órgão ensanguentado você se reconhece? Acaso você é aquela massa gelatinosa escorrendo? Então eu me esvaio em meio a esse líquido e quando me limparem do chão não serei absolutamente mais nada. Mas, você pode guardar indefinidamente na prateleira um pedaço de carne em formol para admirar a pessoa amada, sempre que ela quase sumir da memória você recorreria àquele pote e seu sentimento de posse se refundaria. Aquele pedaço de carne seria seu para sempre. Mas o seu corpo não. E onde estaria essa imagem? Você poderia jurar que aquela carne era da sua amada, não adiantaria, mais ninguém a veria ali. Só você. Apenas um punhado de células mortas em estado de perpétua podridão. O que as diferenciava? O simples fato do sangue ainda escorrer por um corte? Despido de sua imagem corporal ele era um simples defunto em pé. Pior que isso. Um corpo cuja imagem em nada o diferenciava de outros corpos, e portanto existia tão somente enquanto tal, objeto, carcaça. Se alguém me visse assim como reagiria? Objeto com aparência humana cuja pele foi-lhe furtada. Amontoado de comida. A mais pura essência da vida biológica. Uma doença rara. Nada disso. Inerte, inanimado, vendo-me tal qual essência da matéria, agrupada num conjunto indefinido de subconjuntos, partes de mim que em sua totalidade são nada mais que pedaços destinadas à decomposição. Alimento servindo aos vermes, enterrado num buraco qualquer entre tantos qualqueres sumindo definitivamente. No final não restará sequer um átomo, tudo se converterá em outros corpos inúteis que servirão a outros corpos inúteis. Adubo. Da terra brotará a semente e assim por diante. Mas será só isso? Retirada de mim minha imagem o que sobra? Então visto-me novamente. Meu júbilo é extasiante. Ao vestir minhas pernas posso sentir o toque de meus pés no assoalho. Meus joelhos, coxas, canelas, começam a ganhar uma aparência agradável. Meus quadris são revestidos como uma moldura. Minha barriga e meu peito se conjugam e parecem uma coisa só. Meus braços, mãos e dedos ganham leveza, meu pescoço agora sustenta um rosto que parece encontrar sua morada. Meus olhos e minha boca reagem a meus pensamentos e eu reajo a eles. Vendo-me ao espelho posso sentir-me novamente um, novamente eu, novamente habito. Toda minha atopia é dirigida pra um único ponto, um só lugar, uma só pessoa, um só olhar, um só corpo. Então fecho-me como se fecha uma armadura, e protejo-me como se estivesse acuado. Me reconheço na pele em que habito. Me reconheço na imagem da pele que habito. Me reconheço na memória da imagem da pele que habito. Sinto que sou. Mas se justamente não me visse ali? E se o que eu visse ao espelho fosse outro? Se alguém me dissesse não ser aquilo meu reflexo? Você insistiria em sê-lo ou abdicaria? Nomes. A isso se agarraria, como um cachorro se agarra a um pano que tentam retirar-lhe da boca. E se, como se desintegra um átomo, descolássemos o nome das coisas das coisas? Esse corpo desensacado simplesmente despencaria. Seus pensamentos seriam incapazes de dizer a si mesmo eu sou isso e você desapareceria, como um filme exposto ao sol (Dedalus). Não restaria sequer resquício ou onde agarrar-se. A não ser que alguém interviesse e o nomeasse à sua imagem e semelhança. Ligo-o, articulo-o. Então você deixaria sua não consciência de coisa para fundar-se no ser, e nesse verbo residiria o armamento e desarme da bomba. Fez-se o ser. Ao passo que agora teria um corpo idêntico ao de qualquer outro, corpo do qual poderia gozar imaginando tê-lo ou a ele identificar-se querendo sê-lo. E isto se reduplicaria infinitamente porque são corpos, são imagens de corpos, são nomes de imagens de corpos desmontáveis.
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