O presidente e o Iguaçu
Aquele mês de outubro de 1930 foi agitado para o país, mas certamente não tanto quanto o foi para um homem em particular. Espécie de “cria política” de algumas das maiores lideranças caudilhas do Rio Grande do Sul, dentre as quais se sobressaía a figura de Borges de Medeiros, este natural de São Borja, então no auge de seus 48 anos de idade, se via envolvido até o pescoço em um enredo do qual não conseguiria mais se desvencilhar mesmo que quisesse (não que o tivesse querido), e que culminaria com sua posse como chefe de Estado na distante Rio de Janeiro, então capital da República. Seu empossamento não ocorreu após uma comemorada vitória nas urnas, contudo.
Naquela república latino-americana do início do século XX, as eleições serviam para chancelar uma infinidade de acordos, negociações, alianças políticas, apoios econômicos, mas quase nunca eram instrumento de legitimação ou atendimento da vontade popular. Eram os tempos da chamada “primeira república” ou “república velha”, e durante a vigência deste regime, como seria relembrado à exaustão pelas décadas seguintes, a república deveria ser “governada a partir dos Estados, por sobre a multidão que tumultua as ruas da capital”, dando origem a um Estado no qual “questão social era caso de polícia”, e no qual os cidadãos mais desejados para o Brasil eram os brancos, preferencialmente letrados e quase exclusivamente nascidos em solo europeu.
É bem verdade que a escravidão havia sido oficialmente abolida em 1888; permanecia, contudo, uma profunda e escancarada discriminação racial e social que reservava as melhores oportunidades a uma minoria ínfima da população, legando a todos os demais o desemprego (que poderia se converter, com muita sorte, em subempregos marcados pelas péssimas condições de trabalho e pela ínfima remuneração) e a quase completa falta de oportunidades. Em um contexto social como este, não estranha que revoltas populares como nosso Contestado, Canudos ou a Revolta da Vacina se tornassem lugar-comum. É que quando uma república (do latim res publica, ou “coisa pública) não se importa com aqueles que a sustentam algo cheira mal e impele à ação popular. Que, é importante sempre ressaltar, nem sempre é aquela que aparecem nos jornais ou na televisão (rádio naquela época, o qual embora ainda fosse bastante raro nos lares brasileiros já lançava as novidades aos quatro ventos através de auto-falantes instalados em praças e estações ferroviárias de todo o país). Afinal de contas, a “revolta popular” que contava naquela época era a dos ricos, que podiam pagar por páginas e tintas dos noticiários. Para os demais restava sempre o anonimato, apenas vez ou outra interrompido pela pena brilhante de um Euclides da Cunha e seu até hoje inigualável Os Sertões. Será que, no que tange a este ponto, estaremos nós, hoje, vivendo em um país tão mais avançado assim que o de nossos avós? Questão que, sorrateira, acaba de invadir minha mente interrompendo meu raciocínio… Mas voltemos ao que interessa: ao gaúcho de São Borja, aquele que se tornou presidente sem vencer eleição.
Getúlio Dornelles Vargas era seu nome. Dele muito ainda seria escrito, lido, falado e ouvido, como hoje é mais que sabido. O caso é que, envolvido em um movimento civil-militar organizado com o objetivo de reverter uma derrota creditada ao amplo uso de fraude eleitoral no dia 1o de março, movimento este que ganhava cada vez maior ímpeto à medida em que as semanas passavam e os acordos políticos se sucediam, Getúlio Vargas embarcou em um trem rumo ao Rio de Janeiro no dia 10 de outubro de 1930; e é neste momento que nossas cidades tomam parte, mais uma vez, em um evento central para a história de nosso país. Porto União da Vitória, a localidade castigada pelos horrores da guerra ocorrida menos de quinze anos antes, localizada em uma região tumultuada por disputas que datam do século XIX, se tornou um dos pontos de parada obrigatória da comitiva que se encaminhava para tomar o poder nacional.
Precisamente nestas terras, na ainda acanhada estação de madeira, a troca da locomotiva se fazia indispensável para que a viagem pudesse seguir rumo a São Paulo (e de lá para a capital). E aqui Getúlio teve de esperar por duas horas para que a troca fosse realizada. Como era de praxe em ocasiões assim, um discurso improvisado se fazia necessário. E deveria ocorrer no local mais central da então acanhada cidade – a praça da Estação. E, é justo supor, no melhor prédio então disponível – o Hotel Internacional. Da sacada do hotel o futuro chefe de Estado proferiu palavras que ainda não me é dado conhecer – ainda não encontrei nenhum relato que as descrevesse – mas que certamente animaram a multidão que se acotovelava para melhor vê-lo e ouvi-lo. Se fosse possível (quem sabe?) até mesmo tocá-lo. Multidão que impressiona, por suas dimensões, a todos que tomam contato com as fotografias tiradas na ocasião. E que certamente jamais esqueceu este espaço de duas horas que em um dia normal pode passar despercebido à maioria das pessoas, mas que naquela ocasião foi especial a ponto de gravar o nome de nossas cidades nos livros de história do Brasil: o local do primeiro discurso de Getúlio Vargas a caminho da presidência da República. A qual assumiria em caráter provisório em 3 de novembro de 1930. E da qual se retiraria em caráter definitivo apenas no dia de sua morte, em 24 de agosto de 1954.
A praça da Estação, hoje transmutada em praça Hercílio Luz ainda traz consigo, como comentei na última semana, o título de lugar central preferido de nossas cidades. Reformulada várias vezes, sem as árvores frondosas que um dia deram o tom de sua paisagem, segue visitada por muitos e conhecida por quase todos, tornando-se anualmente um lugar privilegiado de reunião daqueles interessados em confraternizar. O Hotel Internacional também mantém-se de pé, mas carrega hoje pouco mais do que uma sombra da glória que ostentou no passado. A ausência de janelas e portas, a fachada desfigurada pelo abandono e pela ação do tempo, o telhado que dá aos visitantes da praça a impressão de que pode ceder à força da gravidade a qualquer momento, ainda remete àquele importante dia no qual, do alto de sua pequena sacada, o homem que se tornaria um dos chefes de Estado mais importantes da história do país dirigiu a nossos antepassados palavras que se hoje não são amplamente conhecidas, certamente marcaram profundamente a mente de todos que puderam ouvi-las.
A tinta desgastada, as telhas faltantes e os tijolos à mostra remetem, contudo, às consequências sofridas por toda e qualquer sociedade que opte por ignorar seu passado, por deixar que os passos de sua trajetória se apaguem. Com os monumentos do passado que cedem à nossa indiferença desaparecem parte do nosso ser, partes essenciais de tudo que nos trouxe até aqui. É importante, fundamental, necessário que não deixemos parte tão central de nossa história desaparecer. O Hotel Internacional clama por estudo, exige conhecimento, necessita de preservação. É de nossa responsabilidade, enquanto cidadãos conscientes e amantes desta terra, não permitir que um lugar tão especial simplesmente desapareça ante nossos olhos. O tempo é implacável, e não deixa espaço para vacilações. Quanto antes nos convencermos disso e passarmos à necessária ação, tanto melhor será o resultado alcançado com nossos esforços de resgate de um passado tão grandioso quanto a história de nossa própria nação. Até a próxima!
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