O que quer a sociedade brasileira?
Existe, e é bem conhecida por todos, uma frase filosófica que diz: cada povo tem os
governantes que merece. No que toca as sociedades democráticas cabe, certamente, uma
adição. Cada povo tem os governantes que merece e deseja. Eis a base dos sistemas
representativos como o vigente no Brasil. O povo, de modo soberano e livre, dirige-se
de tempos em tempos às urnas e vota nos candidatos que melhor lhe parecem. Analisa
suas propostas. Analisa sua história. Analisa sua postura. Analisa seus valores. Baseado,
sempre, no que quiser se basear. Se em jornais, livros, revistas, Facebook ou nos
infames grupos de WhatsApp, as fontes de informação são, assim como os candidatos,
livre e soberanamente escolhidas pelos votantes. Que, ao digitarem seu voto na urna
eletrônica deixam o que melhor tem de si, aquilo que desejam legar para seus
conterrâneos e seus filhos pelos próximos quatro anos. Não há mistério, não há
enganação, não há letras pequenas. Ao ter a oportunidade de se manifestar livremente
em eleições democráticas, qualquer povo recebe a oportunidade de mostrar ao mundo
sua real face e identidade. Não é outro o rosto da doente sociedade brasileira, que não o
expresso nas urnas no último mês de outubro. Não há que contestar: a sociedade
brasileira efetivamente é um reflexo fiel de Jair Bolsonaro e seus ministros e membros
de governo.
Neste sentido, a questão que intitula as presentes linhas apresenta-se como mera
colocação retórica. Desprovida de real dúvida, uma pergunta que não é pergunta. A
vontade da sociedade brasileira, seu projeto de futuro, o modo como deseja ser encarada
pelo mundo civilizado é absolutamente cristalino e não deixa qualquer margem a
dúvidas. Lembro, quase envergonhado, de que em 2013 cheguei a participar das
manifestações que ocorreram na Avenida Paulista, em São Paulo. Na época eu
ministrava aulas em um curso localizado na rua Consolação que, para quem não
conhece a maior metrópole do hemisfério sul, nada mais é que uma via perpendicular ao
início da icônica avenida. As faixas então mostradas, os cânticos então entoados,
empolgavam. Criticavam o aumento abusivo nos preços do transporte público
municipal, mas também exigiam o fim da corrupção e a oferta de serviços de saúde e
educação de qualidade para todos. Era bonito de se ver. Eu era levado a acreditar, então,
que a sociedade brasileira finalmente havia se decidido a ser mais justa e a oferecer
oportunidades realmente iguais a todos, sonho máximo de qualquer um que conheça
minimamente as obras liberais clássicas. Oportunidades iguais para todos e, a partir daí,
livre arbítrio. Eis os princípios verdadeiramente liberais achincalhados e humilhados
pela tentativa brancaleônica de apropriação dos senhores que atualmente se encontram
em Brasília. O futuro sorria. O país formaria, finalmente, uma pátria decente para todos.
Não tinha como dar errado. Este que escreve, então, sorria confiante.
Vieram, então, os blackblocks. O sequestro das manifestações por gente que com elas
nada tinham a ver. As exigências foram se tornando autoritárias, violentas, e pautadas
pelo ódio. Não mais as acompanhei. Mudei-me para o interior. Novos ares. Cidade mais
calma. Ar limpo. Espaço e tempo para pensar, com uma vida bem menos atribulada. O
monstro, então, foi crescendo. Ganhando vida. Ficando atrevido. Acusações sem
provas. Impeachment da única presidente dos últimos quinze anos que não sabe o que é
ser presa por corrupção – causa alegada para seu afastamento. Campanhas políticas.
Eleições. E a sociedade brasileira mostrou sua verdadeira face. A qual não mais se
envergonha de mostrar. Os mesmos que gritaram, há menos de dois anos, “somos todos
caminhoneiros”, agora olham com desdém para o corte de 30% na verba das
universidades e institutos federais. No campus de União da Vitória, é preciso que se
diga, o corte foi de 35%. Os mesmos que vestem, orgulhosos, a camiseta que simboliza
uma das organizações mais corruptas do país, responsável por desvios de conduta até
mesmo na federação máxima do futebol mundial, que cantam o hino nacional e exigem
respeito aos símbolos e heróis pátrios, acusam professores de comunistas e
doutrinadores, enquanto repetem mantras de princípios inquestionáveis e imbecis
formulados por aqueles que mal sabem ler e fazer operações básicas. Que o atual
ministro da educação, ao tentar explicar o corte na educação com peças de chocolate
(que patético!), tenha afirmado orgulhosamente que 30% de cem peças são
representados por três delas sequer causa qualquer espanto. Ninguém viu. Ninguém
comenta. Apenas mais uma imbecilidade de um desgoverno ridicularizado
mundialmente por dizer que o nazismo foi um movimento de esquerda. Idiotia extrema.
Ignorância levada às raias do absurdo. Qualquer sentido do mundo se desfaz diante de
uma sociedade deliciada com sua própria escolha, orgulhosa dos palhaços que elegeu
para governá-la e representa-la, reflexos fiéis de seu próprio ego doentio, sempre de
prontidão a aplaudir e defender os ídolos de seu mundo atravessado pelo racismo, pela
homofobia, pela misoginia e pela burrice, pura e simples.
Bradam, escrevem e postam sobre a “gloriosa revolução de 1964”, enquanto veículos de
comunicação oficiais são instrumentalizados para glorificar os “heróis militares” de um
acontecimento que envergonharia qualquer nação civilizada, mas orgulha grande parte
dos brasileiros. Ao mesmo tempo ignoram quase completamente o 13 de maio,
efeméride absoluta da última semana, abolição da mais ignominiosa instituição do
mundo moderno finalmente extinta no último Estado soberano do mundo ocidental. Se
é verdade que não trouxe a efetiva libertação dos negros, ao menos a Lei Áurea lhes
livrou do opróbio da escravidão. E nenhuma palavra foi dita. Nada de vídeos
institucionais do governo federal. Nada de posts inflamados de brasileiros patriotas.
Nada. Nem nota de rodapé em jornais de grande circulação. Silêncio. Afirmação
inequívoca, mais uma, da real vontade nacional da sociedade brasileira. Que gritem por
igualdade, que peçam por justiça, que afirmem lutar por um país melhor para todos; não
mais me convenço ou me deixo enganar. As urnas não mentem. O cotidiano da
convivência apenas confirma. A oposição esquerdista que jura lutar por democracia
chama “democrática” à ditadura venezuelana. A direita que chega ao poder jurando
defender princípios liberais tem por conduta básica adotar agendas reacionárias,
imbecilizantes e contrárias ao livre arbítrio individual. O que quer, afinal, a sociedade
brasileira? Pergunta de simples resposta, na verdade. Basta ler os jornais. Acompanhar
aos tuítes do presidente e aos comentários por estes recebidos. Basta conversar, por
cinco minutos que seja, na rua com algum passante. Basta ouvir o rádio. Assistir
televisão. Acessar páginas brasileiras na internet. O que quer a sociedade brasileira salta
aos olhos e fica clara à visão mesmo do mais irremediável deficiente visual. O Brasil
continua sendo, firme e decididamente, Brasil. E os brasileiros rejubilam, como nunca.
Apenas mais um dia de ratinhos correndo ao redor de sua enorme, bela, rica, abençoada,
porém mal habitada caixinha. Nada de novo. Vivemos afinal, como bem diz a canção,
em um “museu de grandes novidades”. Falem baixo! As crianças não podem perder a
explicação atenciosa dos capazes guias turísticos. Até a próxima!
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