O terrorismo em sua devida dimensão
O enredo já se tornara um lugar comum. Uma numerosa multidão se reúne para celebrar alguma data cívica ou religiosa; um alto funcionário do governo – quando não o próprio governador – surge para saudar o povo, na ânsia de angariar algum apoio ou, ao menos, alguma neutralidade com relação a uma burocracia que sabia indesejada; alguém salta inesperadamente do meio da confusão que se cria em torno da importante figura (tumulto cuidadosamente planejado de antemão) e a golpeia com um punhal afiado, geralmente no peito ou no pescoço, voltando para o meio da turba em um piscar de olhos e desaparecendo sem deixar qualquer vestígio ou chance de identificação. O motivo do ataque era político: aquele era um povo dominado, humilhado, sobrecarregado com tributos que mal conseguia pagar e cansado de receber as draconianas punições exemplares impostas por governantes que abominavam mais que ao próprio diabo. A escolha da parte do corpo que receberia o ferimento respondia a imperativos da propaganda, para usar um termo moderno: o coração, como músculo responsável por bombear sangue às diversas partes do corpo, está sempre cheio dele; a artéria carótida, responsável por levar este sangue ao cérebro, também. O resultado de um ferimento em ambos implica, portanto, uma cena impactante para todos que a assistem: o sangue pode literalmente jorrar em profusão enquanto a vítima agoniza desesperada, sabedora de que não possui qualquer possibilidade de sobrevivência.
A mensagem, deste modo, ficava clara a todos: aqueles que golpeiam também podem ser golpeados. A humilhação de todo um povo deve ser vingada com sangue. A morte em horríveis condições do ser humano que concentrara todo o ódio de uma nação servia para lavar a honra, para elevar a moral, para massagear o amor próprio daqueles mais radicais que se orgulhavam do feito alcançado. Quanto mais figuras importantes fossem mortas, mais o inimigo vacilaria e mais próxima estaria a completa libertação, na mentalidade deturpada destes assassinos. O futuro seria grandioso na exata proporção do sangue derramado para construi-lo. Não havia o que temer, pois o céu era o destino certo de todos empenhados na libertação do povo de Deus. Quanto mais ações bem-sucedidas fossem realizadas, mais pessoas se ofereceriam para participar das seguintes. O movimento seria incessante, e o grupo tenderia sempre a crescer. Não existia qualquer possibilidade de derrota.
O raciocínio é muito próximo daquele realizado pelos malucos radicais que realizam atentados como o ocorrido em Nice, na última semana, em Paris, no ano passado, e nos Estados Unidos, em 2001: quanto mais sangue, melhor. Não importa quem terá de morrer para isso. Mas fatos como o narrado acima ocorriam com frequência na Jerusalém da época de Jesus, levados a cabo pelos mais radicais dentre os zelotes, grupo contrário à ocupação romana da terra santa que apostava no terrorismo como arma para obter a expulsão daqueles identificados como invasores da terra doada por Deus ao povo escolhido. Séculos mais tarde, no Oriente Médio já tomado por disputas entre povos moradores da Palestina, da Síria e do Egito, o grupo liderado por Hassan ibn Sabbah, conhecido como os “consumidores de haxixe” ou “hashashin” no árabe original, entraria para a história por sua crueldade e pelo alto número de vítimas atingidas por seus ataques, dando origem à palavra que até hoje designa em várias línguas todo aquele que tira a vida de seu semelhante: assassino (assassin, em inglês, ou ainda asesino, em espanhol). Mas que não se pense que o terrorismo é exclusivo dos seguidores da religião de Maomé: os zelotes da época de Jesus eram judeus como quase todos os nascidos na Palestina, e a partir do século XI a Igreja Católica organizaria e financiaria as Cruzadas, expedições militares que durante os dois séculos seguintes tentaria conquistar a Terra Santa recorrendo a táticas intimidatórias de elevada crueldade – tais como o assassinato de populações inteiras sem poupar idosos, mulheres ou crianças, e o completo arrasamento de cidades de grandes dimensões (a própria Jerusalém, por exemplo, foi completamente destruída pelos cristãos em 1099).
A verdade é que o terrorismo é tão antigo quanto a guerra e, como tal, possui origens tão recuadas que é difícil identifica-las com precisão. Táticas militares como o lançamento da cabeça dos soldados mortos em batalha no centro das cidades que se pretendia conquistar, com o objetivo de intimidar a população sitiada e contaminar suas fontes de alimentos e de água, foram pela primeira vez documentadas na Idade Média, tendo sido comprovadamente utilizadas até mesmo na Guerra do Vietnã, na década de 1970, por soldados estadunidenses. O problema, portanto, não é identificar e repugnar atos como o cometido na bela cidade de Nice na última semana. Trata-se de algo que, gostemos ou não, acompanha a humanidade desde tempos imemoriais. A grande questão é identificar as causas do ocorrido, e cuidar para que suas consequências não se tornem perniciosas até mesmo à nossa comunidade.
Não é mera coincidência que atos terroristas de grande magnitude tenham se tornado mais comuns após 11 de setembro de 2001, data que já entrou para a história como inauguradora de uma nova ordem mundial na qual o terrorismo ocupa lugar de destaque. Até então as questões entre os povos eram resolvidas em guerras ditas “convencionais”, nas quais a participação de forças armadas regulares (exército, marinha e aeronáutica) era a norma e geralmente levava à vitória dos Estados com maiores possibilidades de despender altas somas de dinheiro na garantia do treinamento e armamento de seus soldados. Na ordem pré-2001 possuir acesso à alta tecnologia militar era garantia de vitória nas guerras. O que tornava difícil resistir a campanhas militares levadas a efeito principalmente pelos Estados Unidos com justificativas as mais louváveis, mas que tinham como objetivo último a obtenção de acesso barato a recursos naturais considerados vitais para sua economia – como o petróleo, abundante no Oriente Médio do Taleban, da Al-Qaeda e do Estado Islâmico.
É sempre muito útil lembrar que figuras como Osama bin Laden, Saddam Hussein e Muammar Gaddafi, ditadores sanguinários os dois últimos, terroristas responsáveis pela morte de milhares de pessoas todos os três, receberam esmerado treinamento militar de órgãos governamentais estadunidenses em momentos cruciais de suas trajetórias, tendo se tornado notórios inimigos públicos desse país apenas quando se voltaram contra seus interesses imediatos. Do mesmo modo muitos dos militantes do Estado Islâmico, grupo que se tornou o mais notório inimigo da civilização nos tempos atuais, são oriundos de culturas centrais desta mesma civilização, e se valem de uma propaganda sofisticada construída sobre princípios testados em campanhas que intentaram vender desde sabonetes até aviões supersônicos no interior das principais economias do Ocidente. Não é à toa que até hoje, nos cursos de propaganda e marketing, são ensinados vários conceitos forjados por ninguém menos que Joseph Goebbels, simplesmente o responsável maior da propaganda doutrinária veiculada na Alemanha nazista.
Quando colocado em seu devido contexto histórico, o terrorismo dos dias que correm se torna mais compreensível, uma vez que fica nítido que seus princípios norteadores sempre estiveram entre nós. Constitui, deste modo, pouco mais que um modo de alcançar objetivos militares inacessíveis pelos modos convencionais de fazer a guerra. Não quero com isso diminuir o horror que tais atos nos causam. Claro que vitimar inocentes que sequer sabem porque estão morrendo é cruel e digno da mais geral e irrestrita reprovação. Mas é preciso sempre lembrar que esta barbárie não é unilateral: ainda me causa horror lembrar de um vídeo que assisti há alguns anos, no qual uma família iraquiana era metralhada dentro de seu carro por um soldado estadunidense que lhe dera ordem de parar… em inglês. Claro que o motorista não entendeu e continuou dirigindo, tendo por isto toda a sua família morta em questão de segundos em um ato facilmente classificável como terrorista.
Não é possível, portanto, defender que apenas um determinado grupo seja portador de uma desumanidade que o torna propício à realização de atos terroristas. O ser que degolou pelo menos sete pessoas em frente às câmeras em sequências chocantes divulgadas em todo o mundo, era inglês. O Alcorão, livro maior da fé muçulmana, prega o amor e a tolerância tanto quanto a Bíblia e outras obras dignas da maior consideração e sem dúvida merecedoras de uma leitura atenta. O fato de alguns lunáticos praticarem atrocidades alegando falsamente seguir seus mandamentos não o torna um livro ruim ou Maomé uma figura reprovável. Assim como as chacinas promovidas em nome de Jesus, durante as Cruzadas, não tornaram o próprio Cristo um genocida. É preciso não generalizar e resistir à tentação de repetir conceitos simplistas, errôneos e geradores de mais intolerância e, portanto, mais violência.
Não, não foi a benevolência ocidental que provocou o terrorismo. Receber refugiados islâmicos, como a França fez, não foi o que causou os ataques ocorridos neste país – o assassino de Nice nasceu na própria cidade. E a organização de uma guerra de aniquilação contra os muçulmanos no Oriente Médio, como alguns ignorantes tem a capacidade de defender, não vai resolver a questão – lembrem-se que o terrorismo nasceu como uma resposta a séculos de dominação militar ocidental naquela região. É preciso combater o terrorismo como o que ele é, um problema sério causado por um grupo relativamente pequeno de fanáticos de várias nacionalidades que desejam apenas sangue, não importa de quem. Generalizar, também aqui, longe de ajudar em qualquer sentido apenas agravará o problema. Mais uma vez a correta compreensão da questão passa pelo seu entendimento à luz da História, sem preconceitos ou opiniões deturpadas. Até a próxima!
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