Os problemas de 3%
O problema com a segunda temporada de 3% é muito mais de roteiro do que qualquer outra coisa. As interpretações estão melhores (ainda nada excepcional, mas melhores que na primeira temporada e mais unificadas, dessa vez parece que todo o elenco está fazendo a mesma série), a direção é boa como na temporada anterior, o gasto com cenários e figurinos é notadamente maior e as coisas estão um pouco melhor elaboradas (longe de algo fabuloso, mas melhor elaboradas). Então como pode a segunda temporada ser tão inferior à primeira? Porque aquela máxima que o Robert McKee martela tanto em Story, de que o mais importante é a estória, ainda é verdadeira, mas para mim com um adendo significativo: o mais importante é a estória e a estrutura em que ela é contada. A estória de 3% é boa e funcionaria, não fosse o gigantesco problema de estrutura.
Os arcos narrativos são uma bagunça e as linhas de temporalidade uma piada. Mas vamos pensar em estrutura propriamente dita. E aqui vamos começar a jogar spoiler atrás de spoiler pra discutir algumas coisas. Numa temporada de dez episódios tradicionalmente se tem viradas narrativas de três atos, ou seja, a cada três episódios. 3% faz uma escolha de colocar uma grande e importante virada no episódio cinco, no exato meio da temporada, mas não no fechamento de ciclo de episódios. No final deste episódio Ezequiel (João Miguel) é assassinado. Mas não há uma construção que nos leve até isso, como não há uma construção que dê sentido real para o líder do processo de repente se importar e planejar coisas contra o Maralto e a favor da Causa. Isso acontece de modo completamente aleatório.
De repente, num momento relativamente decisivo para Michele (Bianca Comparato), Ezequiel deixa o centro de controle para ir salvá-la no continente, onde revela todo seu plano de ajudar a Causa, de colocar a bomba para impedir o Processo. E depois de anos comandando o processo, de anos pensando e apoiando o sistema de mérito, depois de anos convencido de estar do lado certo, uma simples conversa com o velho faz com que ele mude tudo em que acredita. Assim, de um minuto para outro. Notem que eu acho uma virada interessante, mas ela precisava ter sido muito melhor construída. Para que a morte de um personagem tão importante faça sentido e nos deixe boquiabertos de verdade. Do modo como o roteiro é construído a morte do protagonista, a la Game of Thrones, é tão entediante quanto o resto da série. Mas esse é apenas um dos exemplos.
Os primeiros quatro episódios apresentam um problema recorrente com séries da Netflix: a estória se arrasta numa tentativa de alongamento e nada acontece. Nada importante acontece, com uma exceção, somos apresentados ao trio fundador no primeiro episódio. Assim, a gente descobre que quem inventou o Maralto foram três pessoas (num relacionamento poliamoroso) e não um casal. Mas aí num flashback bem rápido a gente fica sabendo que as coisas meio que acabaram mal e alguém levou um tiro. E pronto. Essa estória de gênese só vai reaparecer lá no final da temporada. E fica atormentando os nossos pensamentos, porque se você me apresenta uma estória de gênese é lá que eu vou querer morar, tanto que o melhor episódio dessa temporada é o que explica o surgimento de Maralto e o apagamento da terceira pessoa. Não apenas porque é uma boa sub-trama, mas também porque é a parte em que o elenco consegue dar credibilidade a um diálogo meio insólito meio mal escrito. E isso é graças ao talento de Maria Flor, Fernanda Vasconcellos e Sílvio Guindane.
O que poderia resolver bem esse problema era ter-se espalhado a estória da fundação em todos os episódios, mais ou menos como acontece com a destruição do planeta em The 100, que é explicada no conta gotas a cada novo episódio na primeira parte da terceira temporada. Aliado a isso poderia ser desenvolvida a dualidade do Ezequiel, ou poderia ter-se usado o primeiro episódio para mostrar a estória de Ezequiel, sua origem no Continente e ligação com o surgimento da Causa, a trágica morte de sua esposa, o reencontro com o velho e a reavaliação de seus ideais. Aliado a isso poderíamos conhecer Maralto finalmente. E no final desse episódio a morte do protagonista e a consolidação de Marcela como vilã (muito melhor que seu antecessor, diga-se de passagem, graças ao carisma e talento da atriz Laila Garin, que trabalha muito bem com muito pouco). Mas não, as coisas se arrastam. Minha impressão é, aliás, que podemos assistir ao episódio um e depois pular para o cinco, que é quando a série começa mesmo.
Outro problema sério de 3% são os diálogos (mas aí é um problema sério de séries nacionais, O Mecanismo dá nervoso de tão ruins que são os diálogos e os refrãos clichê que dão vergonha alheia, apesar disso a série é razoável se a gente desconsiderar o horror que é aquele piloto). Diálogos horríveis com um elenco mediano destroem todo o potencial da série do episódio cinco em diante. Os dois últimos episódios são os melhores, com Michele entendendo o que aconteceu com seu irmão – apesar de tudo ficar meio por isso mesmo – e tomando decisões importantes, Joana e Fernando tentando destruir os dados do processo no Continente enquanto Rafael faz o mesmo no Maralto, a “ressurreição” de Marco, sua mini-jornada para se tornar chefe da milícia e a descoberta de que Marcela é sua mãe (um belíssimo arco narrativo completamente desperdiçado por falhas na estrutura).
Enfim, uma segunda temporada que prometia muito e fica abaixo da média. Os roteiristas de 3% poderiam aprender muito com o time de La Casa de Papel, que tem seus defeitos, mas é uma das melhores coisas feitas pra televisão nos últimos tempos. Todos os problemas de estrutura de 3% se resolveriam com um estudo de caso da série espanhola. Que peca ao se utilizar de alguns clichês, mas ainda os faz de maneira a emocionar a maior parte do público. Os clichês de 3% não passam batidos porque são mal escritos. Se a primeira temporada era nota 7, essa segunda leva no máximo um 5.
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