PALAVRAS-VALISE, ou OUTRAS PALAVRAS
De acordo com Carlos Drummond de Andrade, “Lutar com palavras é a luta mais vã”. O poeta reclama que, na lucidez, não há como encantá-las ou distorcer seu sentido. Por não serem concretas (“Não têm carne e sangue…”), não consegue dominá-las. Pela persistência, porém, acaba por fazer poesia, embora com recorrente dificuldade. Nós, nem sempre poetas, também lutamos com palavras, quando nos inquietamos com o que falamos ou escrevemos.
Algo que nós fazemos bem com esse “fluido inimigo”, no entanto, é brincar com elas. Não me refiro às crianças, divertindo-se com a língua do “P”, mas a jogos bem adultos e exigentes, pelos quais nos aventuramos e nos entretemos com sua sonoridade, sua forma e seus significados.
“Socorram-me, subi no ônibus em Marrocos!” é um dos palíndromos mais famosos na língua portuguesa; pode ser lido da esquerda para a direita e da direita para a esquerda com o mesmo resultado. “Ana” é um nome palindrômico; assim também o superlativo de omisso, “omissíssimo”.
Anagramas são obtidos pela transposição das letras de outras palavras, como fez José de Alencar ao batizar de “Iracema” – anagrama de América – a heroína de seu romance indigenista. Apontar que “argentino” é o anagrama de ignorante, porém, pode ser entendido como uma piada de mau gosto.
A brincadeira na qual queremos nos concentrar hoje é a de unir elementos de duas ou mais palavras numa só, tanto na linguagem coloquial como na variedade padrão. A essas formações chamamos palavras-valise, ou em inglês portmanteauwords. Para isso, usamos geralmente o início de uma palavra e o final da outra. Exemplos são: portunhol e aborrescente.
Na obra “Alice através do espelho e o que ela encontrou por lá”, o autor inglês Lewis Carroll apresenta diversas palavras-valise, que acabam por negar os sentidos e ritmos usuais que elas teriam, atribuindo-lhes outra melodia e o nonsense, ou falta de sentido. Nessa obra encontra-se o poema “Jaguadarte” (no original inglês Jabberwocky), por vezes considerado intraduzível, para cujos primeiros versos o poeta Augusto de Campos apresentou a seguinte tradução: “Era brilhuz. As lesmolisastouvas roldavam e reviam nos gramilvos.” O tradutor procurou manter no português, como no inglês, as construções que mesclam palavras e sentidos.
Encontram-se construções desse tipo também na literatura brasileira. Carlos Drummond de Andrade apresentou “chuvadonha” (chuva + medonha) e “jornaledor” (jornal+ ledor = aquele que lê jornal); Paulo Leminski, em sua obra Catatau, inclui “gratuitária” (gratuita + utilitária) e “vagabundância” (vagabundo + abundância).
As palavras-valise frequentemente constituem neologismos, criando-se através do processo novos termos e atribuindo-se novos sentidos. Nesse sentido, temos: “bit” (binary + digit), “tefal” (teflon + alumínio) , “informática” (informação + automática) e “modem” (modulator + demodulator). Com o tempo, silenciosa e naturalmente, os neologismos são incorporados à língua e então dicionarizados.
Nem sempre percebemos de imediato, na nova palavra, as palavras que a formaram. Quem sabe o que é uma “boacumba” ou um “tricha”? Aqui foram substituídas apenas as primeiras sílabas, para que ao invés de má a macumba seja apresentada como boa; e trocando-se o bi (dois) por tri (três), eleva-se o grau de afeminação da pessoa.
A formação de algumas palavras-valise tem na função expressiva a sua maior motivação, ou seja, elas externam a opinião do falante acerca de algum conceito ou objeto. Isso fica claro em “apertamento”, que indica que é um apartamento de tamanho pequeno e apertado. Os alunos de Letras por vezes referem-se à disciplina como “Literatortura”, para expressar seu sofrimento em desvendá-la; e cansados de ouvir a propaganda dos revendedores da Herbalife, referimo-nos a eles como “herbachatos.
Designações de animais híbridos, como “porcoruja” e “tubaranha”, são encontrados em diversas línguas. “Cebrallo”, em espanhol, refere-se à junção da zebra (cebra) com o cavalo (caballo). Mas esses são animais imaginários, enquanto o “beefalo” (de beef= carne de gado) é uma raça híbrida real, com sangue de bisão americano e de gado europeu. Até mesmo no discurso científico, que é mais resistente a esse tipo de formação, discute-se o “javaporco”.
Novas tendências e realidades também são designadas por palavras-valise: o “sapatênis” une as características da seriedade de um sapato social com o despojamento de um tênis; se você trabalha demais, seja nos Estados Unidos ou no Brasil, você é considerado um “workaholic”; e o hambúrguer de carne tem cedido espaço ao “vegeburguer”.
E para terminar: Vou tentar um “paitrocínio” para assistir ao “Grenal” com os “brasiguaios”, depois do “showmício” e do “futevôlei”; se não der certo, já que é inverno, contento-me em “aprochegar-me” em frente à televisão e “bebemorar” com um “chafé”.
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