Porque meu tema desse ano foi Eu/Outro (outro/eu)
“eu não sou eu”. Esta pequena frase está no seminário 2 de Lacan, acompanhada de um comentário do tipo “nem adianta sair fazendo alarde na rua”. O que está em jogo? Como o seminário tem por título “o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise” obviamente seu objeto seria o ego. Mas não. Aliás, o termo ego é uma herança da tradução realizada por Ernest Jones, do alemão para o inglês, da obra freudiana. Freud utilizava Ich, correspondendo ao nosso eu. Do mesmo modo veremos em Lacan o uso do moi francês. Só que Lacan procura tomar distância desse termo para marcar sua diferença ao Je. Com este passo ele se serve de um equívoco, e de uma ambiguidade, para demarcar uma radicalidade entre o eu imaginário, o que corresponde ao eu narcísico (a imagem do eu, o corpo, a unidade objetal) e também sua coextensão: o outro. Isto é muito preciso porque quando Lacan escreve outro com minúscula ele se refere ao semelhante, ao outro enquanto imagem e semelhança do eu. O outro aqui adquire a propriedade especular, e nestes termos a imagem especular é tratada como um outro. Ora, esta duplicação fornece a chave para compreender a relação narcísica com o eu enquanto um objeto. O narcisismo é caracterizado pelo investimento libidinal no eu, em termos freudianos, tomando-o como um objeto. Isto também avança na compreensão da relação de objeto com o outro, demarcando-a como uma relação igualmente narcísica. Neste sentido, posto que se trata de sentido, o leque das identificações também tem na teoria do narcisismo seu modelo. O semelhante com o qual haja identificação (horizontal) se alinha ao eu de modo a preservar traços mais ou menos compartilhados. Tem-se aí uma função de alienação fundamental. Mas, é preciso cautela. Se a relação é dual, de eu a outro, ela não sai jamais do especular. Muito embora a teoria do narcisismo nos ajude a compreender a agressividade: não há aqui um princípio fundamental de projeção no outro? Ela inclui sempre, e esse é o passo decisivo, um terceiro: seja o olhar desse terceiro, sua voz, sua palavra, sua suposição, sua presença. Então, pensar o narcisismo numa relação puramente imaginária (eu a outro, ou inversamente) cria um curto circuito dialético, muito próximo à teoria hegeliana da luta de puro prestígio promovida entre o senhor e o escravo. Trata-se, neste viés, de uma disputa onde só pode prevalecer o desejo de um sobre o outro. Isto ajuda muito a compreender a reação de agressividade. Mais ainda, ela ajuda a compreender o fracasso do ideal, de um suposto equilíbrio, de um acordo. Justamente por conta desse fracasso da linguagem surge a eficácia do simbólico (isto não é uma contradição), precisamente na insistência do sintoma, com sua demanda significante. É por não ter sido possível no plano simbólico alguma solução para o conflito narcísico que ele retorna no real, basicamente sob o modo de agressividade: a resposta, menos a elaboração dela. Ou, a regressão ao nível mais primordial, infantil, subtraída de seu significado, ou, atualizada na projeção no outro, imagem do eu. Assim a recusa, no outro, daquilo que o eu rejeita, retorna sob sua mensagem de maneira invertida: agressividade ao outro (neste contexto). Mas o narcisismo também fornece o modelo objetal amoroso. Naquilo onde o sujeito se vê encantado no objeto, ali ele é sua extensão. Por que? Porque a relação de objeto sempre supõe um sujeito, um desejo. Este sujeito, para reaproximarmos da teoria, surge, nasce, na linguagem. Sujeito que embora nomeado pelo Outro (aqui maiúsculo) só pode ser reconhecido como tal (desejante) pelo Outro, isto é, no interior do código que o instaura e o ratifica. Agora temos frente ao espelho não só a imagem do eu e o eu que se vê enquanto imagem, mas o olhar de um terceiro que a reconhece. Passamos de uma relação dual, extremamente marcada por certa fusão, para a ordem simbólica, onde justamente, a presença é a própria ausência. O Outro (com maiúscula) inaugura um campo que divide o sujeito, e o divide pelo advento do simbólico. Muito embora a imagem do eu seja um elemento de sua identificação narcísica fundante, ela é extremamente frouxa, o que não deixa de causar efeitos secundários importantes. É o perpétuo desalinhamento entre o sujeito e sua imagem, que leva à procura desenfreada por imagens substitutas. Mas para além dessa necessária e suficiente divisão imaginária, há um sujeito dividido entre os significantes. E é nisso que ele fala, demanda, re-clama, que se pode ler o que sua relação narcísica com o outro tenta atualizar, mas que se funda num ponto ainda mais radical, a fantasia que o liga ao desejo do (seu) Outro. É este enigma, com suas inversões e atualizações, que nos leva ao plano pulsional, e que nos ensina a abordar o sujeito no campo do Outro, para além das formações imaginárias.
Psicólogo clínico, especialista em Teoria Psicanalítica e em Neuropsicologia. Atende em Caçador e União da Vitória. giuliano.metelski@gmail.com (49) 99825-4100 – WhatsApp / (42) 99967-1557
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