Projeção histórica de um filme parado
Jacareí, província de São Paulo. 5 de outubro de 1876. O fazendeiro João Pereira de Souza vai a júri popular, acusado de ter matado a sua escrava, chamada Thereza (assim mesmo, sem sobrenome, pois nome de família era algo que apenas os muito ricos ou com padrinhos muito ricos podiam ostentar). Nos autos do processo de investigação, é possível ler que a mulher morrera após passar horas de agonia marcadas por convulsões frequentes. Os acusadores defendem que a causa de tanto sofrimento teria sido um forte chute que o fazendeiro teria dado em sua fronte, pela manhã, como repreensão por ela não estar realizando seu trabalho – escolher café – do modo desejado. Imediatamente após a violência, Thereza teria se retirado, ainda cambaleante, e em poucos minutos começava a passar mal. João Pereira de Souza confirma o acontecimento, mas defende-se nos tribunais afirmando que apenas “repreendi-a, e ligeiramente dei-lhe com o pé na testa, pois achava-se a mesma assentada no chão” (e, aqui, copio fielmente o documento histórico). De resto, continua o fazendeiro, Thereza merecera a repreensão. Sua morte certamente teria sido resultado de um suicídio por envenenamento, pois era geralmente conhecido seu temperamento indócil. A acusação, por sua vez, seria resultado de “sentimentos de vingança” nutridos por outros escravizados, os quais encontraram acolhida favorável na pena de um delegado que também lhe era desafeto. Ao final do júri, João Pereira de Souza estava absolvido por unanimidade. Enquanto Thereza jazia em uma cova comum, sem qualquer ornamento ou identificação, no cemitério da cidade, o fazendeiro oferecia um jantar a seus familiares e amigos para comemorar a “comprovação de sua inocência”.
Não longe dali, em outra fazenda produtora de café da região de Campinas, os lampiões estão acesos e a comida é farta. Os convivas festejam o aniversário do filho de um dos maiores fazendeiros da região, aquele que estava destinado a herdar um verdadeiro império, graças à sua condição de primogênito. Conversas, risadas, cantorias. Um fim de tarde realmente agradável. Exceto para João, escravizado que, após receber cento e vinte chibatadas como punição por sua tentativa de fuga, agoniza no tronco erguido ao lado do terreiro, não muito longe da casa-grande. Na verdade, era uma característica comum a todas as fazendas da região ter o terreiro no campo de visão da varanda, de onde o senhor poderia acompanhar, de camarote, à garantia de que a lei e a ordem imperariam em suas terras. Ao lado de João, uma mulher chora. É Maria, sua companheira. Chorar o sofrimento do marido, contudo, não é permitido. Logo o capataz a retira dali, pouco antes de receber um generoso garrafão de vinho, oriundo diretamente da grandiosa festa, como prêmio pelo bom trabalho realizado naquele dia. Se a função de agregado em uma grande fazenda de café não deixava rico, ao menos comida, bebida e alguns prêmios por bom desempenho não costumavam faltar. Afinal, lealdade era uma mercadoria rara, mas razoavelmente barata, naqueles tempos. João merecera seu castigo. Morreria, para ensinar aos demais o que acontecia com quem ousasse renegar sua condição de escravo.
Porto Alegre, 2020. No estacionamento de um supermercado, percebe-se uma movimentação estranha. Três homens brigam, na tradicional configuração dois contra um (que define covardia, como aprendi em minhas várias brigas dos tempos de escola). Rapidamente um deles, o que está sozinho, começa a ficar em desvantagem. Havia se dirigido ao supermercado para comprar um pudim de leite, deliciosa sobremesa a qual também aprecio. Cai. É chutado. Segurado por um, recebe pancadas do outro. Pontapés na face e em todo o corpo. Ao lado, uma mulher filma tudo. Alguns minutos depois, no estacionamento, há dois homens e uma mulher, em pé. No chão, um corpo coberto. Em volta, pessoas que filmam. João Alberto Silveira Freitas, argumenta a mulher que filmava, iniciou tudo. Ela foi agredida. Ofendida. Os dois homens apenas intervieram tentando acalmá-lo e controlar a situação, mas foram levados a agir pela brutalidade do, agora, defunto. João mereceu. Ademais, a morte certamente deve ter ocorrido em decorrência de algum mal súbito provocado por um vício preexistente. Uma fatalidade. Todo o resto é mimimi. No dia de hoje, as ações na bolsa da rede Carrefour já valem mais do que antes do ocorrido.
Ipanema, Rio de Janeiro. 27 de novembro de 2020. Carlos Eduardo Pires de Magalhães, em situação de rua, sente-se mal e corre até uma padaria em busca de socorro. Após ter suas súplicas ignoradas, cai morto dentro do estabelecimento. Seu corpo é coberto por um plástico preto e cercado por mesas e cadeiras. A rotina não é interrompida. Pães, bebidas e quitutes continuam sendo servidos a clientes que, a fotografia não mente, seguem sua refeição confortavelmente sentados enquanto observam o inusitado pacote e mastigam seu pão com manteiga (ou seja lá o que comiam). Duas horas se passaram até que o serviço funerário municipal aparecesse para retirar o corpo. Durante este tempo, só Deus sabe quantos clientes passaram pela padaria que, para provar que seu dono não é “maricas”, continuou aberta. “Ninguém teve humanidade com ele enquanto estava vivo, porque eu terei agora que ele está morto?” Tem razão, o digno cidadão dono do estabelecimento. Afinal, humanidade não é uma característica comum a todos os seres humanos. Ademais, Magalhães sabia que estava doente, recebeu oferta de ajuda, chegou a ser internado, mas ainda assim se recusou a continuar no hospital. Ele mereceu a morte, como ensinam os comentários postados logo abaixo da notícia. Que o dono, os funcionários e os clientes da padaria que continuaram sua refeição indiferentes a um semelhante que ali jazia após sofrimentos horríveis, simplesmente não é algo que deva ser observado, afinal “eles não têm culpa pelo que aconteceu”.
Quatro casos. Três refeições. Uma sobremesa. Dois períodos históricos separados porcento e vinte anos. Um país. Racismo. Descaso com os pobres. Desculpas que escancaram ainda mais os traços de personalidade de membros de uma sociedade doente há várias gerações. O que é o Brasil? Quem são os brasileiros? Talvez essa breve digressão nos ofereça material para pensarmos a questão. Até a próxima!
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