Protesto contra caminhos que ceifam vidas
Houve um tempo em que era possível deslocar-se por largas porções do território brasileiro sem sentir medo. Em que nossos pais e avós podiam assumir o compromisso de uma viagem com a certeza de chegar sãos e salvos no destino final, sem precisar temer nem por um minuto por sua integridade física. Em que as despedidas eram sentidas e chorosas apenas devido a nosso temperamento latino sabidamente emocional, pois se aqueles que se despediam sabiam que era possível que nunca mais voltassem a se ver (afinal a vida é assim, estamos sempre sujeitos a “um escorregão idiota em um dia de Sol, a cabeça no meio fio”, como diz a conhecida canção de Raul Seixas) também tinham plena confiança de que o meio de transporte que o viajante utilizaria era plenamente seguro, dificilmente colocando seus passageiros em dificuldade. Bons tempos em que os trinta ou quarenta quilômetros por hora de deslocamento (muito pouco para os dias atuais, mas uma verdadeira conquista tecnológica na época de sua implementação) permitiam uma viagem rápida (de novo, para os padrões da época) e tranquila, deixando àqueles que precisavam ir de uma cidade a outra a única preocupação de pensar nos compromissos marcados no destino, e o que mais quisessem. Tempos idos que, comparados aos atuais, deixam cada vez maior saudade. Os quais, a cada vez que penso neles, me deixam com o desejo incontido de querer que voltem a ser o presente. Porque meu sentimento é de retrocesso. De absurdo. De revolta. Simplesmente não é possível continuar como está. Simplesmente não dá para entender como nossa sociedade aceita passivamente a carnificina da qual é vítima diariamente, sem que uma só voz se levante em protesto. E, a continuarem as políticas públicas na direção em que estão, não é possível assimilar que continuaremos convivendo com este estado de coisas ainda por décadas aparentemente sem fim.
Sim, o estimado leitor provavelmente já percebeu que estou me referindo aos transportes de nosso país, especificamente de nossas atuais rodovias em comparação com as ferrovias tão importantes em anos não tão recuados, mas completamente abandonadas na atualidade. Nesta semana, toda a equipe do campus União da Vitória do Instituto Federal do Paraná ficou sobressaltada com uma notícia revoltantemente banal, repetitiva, normal, mas que estranhamente todos acreditam que nunca ouvirão. Dois de nossos colegas professores sofreram um sério acidente automobilístico em uma das obscenas estradas catarinenses (mas que, bem sei, não possuem contrapartes muito melhores também no Paraná), enquanto voltavam de um fim de semana com a família. Em um dado momento da viagem, um caminhão surge sabe-se lá de onde e entra na pista sem sinalizar, deixando à motorista pouca escolha para além de buscar minimizar os danos da inevitável pancada. Como resultado da situação inconcebível para mentes sadias, restou um carro completamente destruído, um professor salvo pelo cinto de segurança e pela perícia da amiga, e uma professora bastante ferida – felizmente sem gravidade. As fotos do que restou do carro comprovam que, se não houve maiores prejuízos, trata-se isso de algo que não poucas pessoas definiriam como um milagre. O condutor do caminhão fugiu do local. Sim, o veículo dele conseguiu se locomover o suficiente para que a covardia mais vil se fizesse notar mediante uma fuga sem a prestação dos devidos socorros. Porque também em nossas estradas a impunidade que tão bem conhecemos reina quase absoluta.
É possível, nestas verdadeiras terras-de-ninguém constituídas por nossos precários caminhos de asfalto, provocar uma colisão de largas proporções e sair ileso, sem que ninguém sequer saiba quem esteve envolvido na ocorrência. Porque à criminosa falta de manutenção de nossas rodovias junta-se a não menos repulsiva ausência de fiscalização. De que adianta colocar placas com limites de velocidade se ninguém as respeita e ninguém as faz respeitar? A situação é, francamente, caótica. Plenamente justificadora do fato de que morrem e ferem-se mais pessoas no simples ato de deslocar-se, no Brasil, do que nas sangrentas guerras da Síria. São milhares de vidas interrompidas subitamente por ano, sem que nada seja feito para impedir. Àqueles que viajam resta apenas fazer a sua parte, e esperar impotente que os demais façam o mesmo. Que um buraco capaz de facilmente empenar uma roda, entortar um eixo ou rasgar um pneu não apareça na frente de seu veículo. Àqueles que esperam resta apenas e tão somente isso: esperar. E, se tiver alguma crença, rezar.
A situação toda se torna cada vez mais revoltante à medida em que percebemos que ela não é, de modo algum, inevitável. Muito longe disso. Trata-se, na verdade, de uma opção consciente, realizada e reiterada por governantes que sequer sabem o significado da palavra “estadista”. Que tratam apenas de sua própria reeleição, de seus próprios interesses. E que apenas se lembram do campo de guerra formado por nossas estradas quando se dispõem a, cinicamente, lamentar alguma nova e absolutamente previsível tragédia nos canais de televisão e nas páginas dos jornais. Há não muito tempo esta situação não existia. Era possível viajar para quase todas as principais localidades do país de trem, valendo-se de todas as vantagens oferecidas pela vanguarda tecnológica do momento. Aqueles que queriam conforto e podiam pagar por ele, tinham à sua disposição as luxuosas primeiras-classes, os famosos “trens de prata”. Aqueles com menos posses podiam viajar nos vagões de terceira classe, menos confortáveis mas muito mais seguros que qualquer dos apertados e não muito mais ágeis ônibus disponíveis nas estradas da atualidade. As ferrovias representavam meios de transporte realmente muito democráticos (no que as rodovias atuais, ao matar e ferir cotidianamente pessoas de todas as idades e classes sociais não ficam muito atrás, é preciso convir). E, enquanto meio de transporte de cargas, eram uma opção muito mais barata e confiável que os caminhões que, se hoje em dia representam o meio de sustento de milhares de famílias, também provocam prejuízos com um transporte lento, dotado de pouca capacidade de tonelagem, e responsável pelos sérios estragos produzidos no asfalto não raro de baixa qualidade utilizado nas estradas de todo o país.
Claro que, quando lamento profundamente a obrigatoriedade de utilizar as péssimas rodovias que servem às nossas cidades para me deslocar para Curitiba ou para São Paulo (afinal não temos aeroporto e, mesmo que tivéssemos, eu dificilmente conseguiria pagar pelo valor das numerosas passagens que seriam necessárias dadas as minhas frequentes viagens), não estou desejando do fundo da minha alma que voltemos a nos transportar fazendo uso das locomotivas a diesel ou a vapor que marcaram tantas gerações de brasileiros. Seria o mesmo que desejar viajar em um carro fabricado entre os anos de 1900 e 1950, se o sentimento fosse contrário. Mas eu desejo, sim, que as ferrovias voltem a ser uma opção de transporte viável. Que pessoas realmente dignas de dirigir um país das dimensões do nosso consigam chegar e se manter no governo, e que possam entender que, se uma ferrovia é realmente bem cara para construir, é muito mais barata para manter. Que a vida de milhares de brasileiros assassinados por uma opção política míope, realizada inicialmente por Juscelino Kubitschek e confirmada por anos a fio pelos governos militares (sim, os mesmos militares que alguns – felizmente muito poucos – tem a coragem de pedir que voltem ao poder em pleno 2016) não têm preço, e devem ser protegidas por aqueles que receberam seus votos. Que o escoamento da produção nacional em direção aos mercados consumidores internos e externos pode ser muito mais barata e logisticamente mais simples, tornando nosso país competitivo na arena internacional e incentivando o aumento desta mesma produção. Que hoje existem tecnologias extremamente avançadas que permitem o transporte de passageiros a velocidades muito maiores que as hoje oferecidas pelos mais modernos automóveis com risco quase zero (preciso lembrar dos trens-bala japoneses que tem como velocidade média incríveis trezentos quilômetros por hora?), e de enormes quantidades de carga com uma praticidade simplesmente impensável para qualquer rodovia hoje existente no Brasil ou no mundo. Que a matriz de nosso transporte precisa ser planejada para atender apenas aos interesses da nação brasileira, e não de montadoras estrangeiras quaisquer que sejam. Desejo, em suma, que no que tange a este quesito nosso país possa ser gerido tendo por base princípios verdadeiramente racionais. E que, no caso de não sê-lo, que muitos mais milagres como os que salvaram nossos queridos colegas professores sejam repetidos em cada estrada por todo o nosso país, para que mais nenhuma família precise sofrer a perda de ninguém por um motivo tão revoltantemente bizarro.
Acontece que, neste caso como em outros, o que eu desejo dificilmente se realizará. Me resta, portanto, escrever, o que faço semanalmente neste espaço. E torcer para que, no caso de meus estimados leitores concordarem com meus argumentos, ajudem a construir um país melhor para nossos filhos e netos. Até a próxima!
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