Quando a falta falta
Há um tipo de raciocínio fundamental cuja dialética tem que considerar uma falta estrutural. Há alguns anos dediquei um trabalho a isso utilizando a metáfora rude de um quebra cabeça móvel, onde a configuração de sua articulação deveria mostrar um sentido de amarração lingüística preservando o deslocamento da falta estrutural pela ausência de uma peça que o completasse. O trabalho teve seu valor, serviu de ilustração a que se propunha, mas como toda analogia era só aproximativo. Tentei explorar ao máximo as relações de sentido, que tal como o desejo, representado pela falta, indicavam justamente a construção necessária à projeção do desejo na língua, nas atitudes cotidianas, no meio pelo qual ele toma corpo. Quis com isso privilegiar o caráter mutável, tanto do objeto que serve a esse fim, como da armação possibilitada pela fantasia em atribuir qualidades ao objeto do desejo. Em uma palavra: o objeto de desejo ganha seus atributos em substituição à falta de objeto. Isto era evidente, mas não me parecia bem explorado. Toda a construção da argumentação visava a necessidade da busca de sentido, obviamente isto geraria um movimento sem fim, e apenas indiquei de passagem que a fantasia, em consonância ao sintoma, é o que pode fixar uma articulação. Indiquei também que outra via – não menos importante no entanto – possível para o reconhecimento dessa falta era a da angústia. A angústia surge quando a falta falta. Aqui as analogias com um objeto criado para ilustrar as relações lingüísticas deixam a desejar. Num quebra cabeças cuja estrutura requer uma peça faltante, é impossível visualizar a falta da falta. Mas isto não deveria ocasionar obstáculo, afinal não existe imagem dela. E é precisamente por não existir essa imagem que a falta precisa sempre estar presente em sua parcialidade. Toma-se distância dela, na medida em que se deseja em seu lugar. O que surge em seu lugar pela via do desejo ainda preserva algo de sua estrutura, chamamos a isso transferência. Ou seja, o desejo visa aquilo que falta no próprio objeto de desejo, sendo direto: se ama no outro aquilo que falta a ele, lugar de repouso de suas atribuições, desejo de desejo dele, desejo de ser no desejo dele o que complementaria sua falta. Em suma, essa teoria do amor garante um sentido à falta, falta que se tornará logo amor. Tudo aqui se encaixa bem com a definição da fantasia, ela fixa o objeto ao sentido dado a essa ausência: o eu passa a existir a partir da falta no Outro, a perca do objeto se iguala ao sentimento de angústia. Esta é a parte não explorada naquele trabalho. Talvez isso explique porque só se pode odiar o que se ama, etc. É que se essa falta não pode ser sentida no Outro, nada resta ao sujeito do desejo senão deparar-se com sua pura condição de objeto caído, ele não serve pra nada a esse Outro. Essa atopia revela a inconsistência do signo, nominalmente de amor, insistentemente demandado como garantia, e que racha pela impossibilidade de haver garantia mesma. Quando surge algo relativo à imagem da falta, surge como algo que não deveria estar lá, surge onde não deveria aparecer, causa pânico por não deixar dúvida de sua existência. Um rápido exemplo o demonstra: as pessoas geralmente sentem atração por lugares desabitados, mas se repentinamente aparece alguém de súbito pode-se prever a reação delas. Assombrações, pesadelos, sustos, depressões, são reações a este real. Quando a falta a falta, a angústia se encarrega de sinalizar o perigo iminente, onde a realidade (o símbolo, portanto) não pode representar o que vela. É isto que derruba o sujeito de seu lugar fixo à dependência do desejo do Outro, e é essa certeza diante de uma verdade estrutural que o indica a direção em que desejará, ou não, investir mais uma vez. “Se Deus existir terá que implorar meu perdão” frase encontrada no bolso da roupa de um corpo em Auschwitz.
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