RAW
Como um filme de terror é muito mais do que um filme de terror? Na semana passada já falamos sobre o gênero terror racial, com o filme Corra!, uma reinvenção do gênero como metáfora social. Recentemente dois títulos foram adicionados ao gigantesco catálogo da Netflix. O primeiro deles, o terror dramático Raw, usa o canibalismo como metáfora para transição da adolescência para a vida adulta. O segundo, também apoiado em jovens protagonistas em transição, mostra uma espécie de terror sobrenatural sexualmente transmissível. It Follows (o título original, já que a tradução péssima chama Corrente do Mal) é um tipo mais tradicional de terror, com sustos e uma inexplicável força sobrenatural do mal. Mas ainda assim, traz frescor para um gênero tão desgastado. Essa semana vamos falar um pouquinho mais de Raw. E na semana que vem um pensamento mais detalhado sobre It Follows.
Em 2014, com a estreia de Babadook, um tipo de terror mais dramático, centrado no desenvolvimento das personagens, começou-se a construir um tipo de linguagem e narrativa mais complexa do que os sustos das incontáveis sequências de Atividade Paranormal ou dos seus primos irmãos do gênero foundfootage. E não me entendam mal, o primeiro Atividade Paranormal, por menos complexo que seja em termos de narrativa ou de personagem, é um filme excelente. Baixo orçamento, reinventando a estética de vídeos encontrados após eventos terríveis. Alguém lembrou do clássico dos anos 90, A Bruxa de Blair? Pois é, mas AP fez algo que seu predecessor não conseguiu, transformou o foundfootage num subgênero, explorado ad infinitum, até que a estética em si perdesse todo o sentido. Sucesso de público na época, o filme se apoiava na construção de tensão constante, sempre elevando um pouco o risco a cada cena até o final chocante (bom, mais ou menos). Se existe algum tipo de cansaço relacionado ao filme, foi pelo gigantesco número de cópias baratas que gerou, ou até de suas sequências não tão surpreendentes quanto o original. Babadook, por outro lado, funciona em outra via. Personagens complexos, construindo a partir da evolução de seus arcos narrativos uma estória sobre depressão e luto, sem deixar de lado os muitos (muitos!) sustos e o suspense crescente.
Raw, filme de estreia da diretora e roteirista francesa Julia Ducornau, parece a primeira vista um filme gore ou de torture porn, cheio de cenas chocantes e uma premissa mais chocante ainda: a jovem Justine acaba de entrar na faculdade de veterinária e como trote é obrigada a comer carne. Vegetariana que é, se recusa a princípio, mas acaba tendo que ceder. A partir disso ela começa a desenvolver o gosto pela carne, evoluindo para o gosto pela carne humana. É isso aí mesmo, em linhas gerais Raw é um filme sobre canibalismo. Porém, se olharmos um pouquinho mais a fundo vamos entender que o filme se constrói muito mais através da complexidade de suas personagens, nas metáforas sobre o amadurecimento, do que no choque e no grotesco. É verdade que o filme fez pessoas desmaiarem quando de sua exibição no Festival de Toronto, mas é também verdade que o choque não está sendo mostrado de forma gratuita. A relação entre o consumo de carne e os animais sendo examinados, testados, passando por cirurgias, dentro do hospital veterinário não passa despercebida. Tampouco a relação entre o cachorro sacrificado por ter supostamente experimentado carne humana (e quem sabe ter criado gosto por ela) e a personagem principal. Mas o filme tem seu ponto alto justamente no desenvolvimento das personagens. Tanto na rivalidade de Justine com a irmã mais velha, que frequenta a mesma universidade, quanto na fase de transição para a vida adulta, os desejos carnais (trazidos de maneira literal como o desejo por carne) e a responsabilidade sobre quem se é. A trilha sonora segue a risca a cartilha do terror, mas o modo de filmar não. Planos longos e estáticos contrastam com sequências mais frenéticas. Mas os planos abertos nos mostram constantemente a solidão da personagem, a solidão de se estar no mundo, a solidão do amadurecimento. Muito mais sobre a formação do caráter do que sobre canibalismo, Raw é uma das melhores metáforas sobre deixar de ser criança, sobre responsabilidade por aquilo que se come e por aquilo que se é.
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