Realidade quimérica*
Existem coisas estranhas acontecendo o tempo todo. Após uma longa noite, começam a achar que você ficou louco. E daí? Ora, os pássaros já acordaram e as palavras teimam em não sair. Tem pessoas que precisam ficar bêbados para que as palavras fluam. Se eu fizer isso, tenho pena de quem estiver por perto.
Ouvi de um amigo que escrever – e principalmente tentar – é uma das maiores utopias da humanidade. Qualquer publicação é permeada pela inverdade do autor e de quem a lê. A história desse mundo é escrita pelos homens. Então, de acordo com ele, somos todos mentirosos (escritor e leitor) e temos uma bipolaridade entre a verdade e a mentira. Sobre isso, só posso dizer que o mais interessante é começar o incêndio…
Conheci um garoto lá nos anos 90 que tinha como objetivo ser um grande escritor. Era sardento, tinha o cabelo desgrenhado e vivia recitando poemas em voz alta. Contou que tinha saído de casa e vivia uma vida marginal e desgraçada. Mas no fundo, era sua grande escolha. Só assim conheceria as entranhas fétidas do mundo e saberia descrevê-la nos textos.
Certo dia me pediu um conselho. Eu tentei me safar, mas diante da impossibilidade, disse apenas para ele não escrever. Indignado, perguntou o por quê. Fui no cerne: “Você declama muito bem. Já seus textos não são tão bons como seus discursos. O mundo perderá um escritor meia-boca e ganhará um excelente orador.” Depois de eu quase levar uma bordoada no meio da cara, o garoto virou as costas e sumiu.
Passaram alguns anos quando encontrei com ele novamente. Minha reação foi uma miscelânia de espanto e riso. Lá estava ele, com uma fisionomia plúmbea, usando uma roupa bem diferente da que usava na vida marginal que tinha escolhido anteriormente. Assim que me viu, veio ao meu encontro, pegou-me pelo braço e pediu os dois primeiros canecos.
Após uma conversa para acalentar bovinos, foi direto ao ponto. Claro, era sobre aquele meu “conselho” anos atrás. Sorveu o segundo caneco e disparou com uma das vozes mais metálicas que já ouvi: “Naquela noite que conversamos, tinha vontade de matá-lo. Achava que no mínimo teria algo mais substancial de sua parte. No dia seguinte, sua cara nojenta não saia da minha cabeça. Descobri que, para tirar isso da minha mente era preciso fazer algo. Fui fazer um teste na rádio tal. E hoje estou aqui…”.
Tinha assumido o posto da principal voz de uma emissora de TV e era contratado para as melhores solenidades. Não lhe disse nada. Hoje, mais de 20 anos depois, lembro que salvei mais um da quimérica epopeia literária. Assim, concluo que continuo vivendo o irreal. E você que está lendo isso também.
*Reedição
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