Recalque e Projeção
Às vezes nós observamos, assim sem pretensão mesmo. É o que rotineiramente acontece. Acontece também do pensamento tocar pela observação em flagrantes, e esses remontarem a associações. A gritaria da vizinha, uma palavra escrita errado, em geral a assimetria. O que acontece regularmente também, é a consagração de um termo por parte de um certo grupo. Seu uso passa a ser uma espécie de senha, conota uma cumplicidade e supostamente concordância quanto às intenções em seu uso. Torna-se signo daquilo que representaria e dota a representação à qual é atribuído de uma
imagem, ou talvez apenas dum sentido parcialmente definido. Elege um raio de significações próximas a ele e é utilizado em seu destaque: sempre representando uma qualidade alheia, negativa por assim dizer. Chamou-me a atenção nos últimos dias, o uso de um desses termos, por ser um conceito psicanalítico, o recalque. Não posso dizer se ele caiu no uso por influência de alguma personagem, de uma novela ou programa, ou as pessoas passaram a saborear seu som. O pouco que pude compreender do seu uso parece-me restringir-se a algo relativo à inveja, a atitudes acusativas, como fosse a qualidade ligada a seu significado resposta a alguma acusação impertinente. Então a intromissão em assuntos de caráter mais íntimos recebe a qualificação. Talvez haja uma analogia com recatada, mas na verdade pouco importa, bendizemos o dinamismo da língua. Só que, no entanto, um significado compartilhado – passível contudo de modificação – passa a ser uma atribuição de qualidade pelo falante em referência a outro e isto claramente se vincula ao imaginário na função da fantasia. À crítica recebida o termo busca revelar uma falsa moralidade velada. Ela seria então, nessa perspectiva, uma projeção de algo recalcado. Se critica justamente aquilo que se deseja. O que é estampado no outro causa aflição por ser um reencontro com o que jaz oculto em si mesmo. É um belo exercício. Não é possível deixar de notar que a escolha desse termo se dá quase exclusivamente pelo universo feminino. A disputa imaginária, sempre caricatura de uma rivalidade fálica, é nesse caso mais do que aquilo que é mostrado (esse dar a ver é também íntimo ao feminino) ela busca revelar a própria intenção daquilo que é o inconsciente no discurso concreto, nada mais aqui do que o contrário do que é dito. Só que o modismo costuma estender-se ao exagero e torna-se defesa, acusar sobre uma acusação não significa necessariamente que atribuir a qualidade de recalcada a alguém não seja igualmente uma projeção. Digo isso pra não tomar partido, ninguém se qualifica recalcado, assim com orgulho. Então vou expor o que entendo por recalque com um exemplo real cuja vítima foi eu mesmo. Queria lembrar-me de uma lei de recapitulação, mas dizia eu, princípio. Então surgiu princípio epigenético. De fato há um, de Erickson. Depois disso me parecia ter algo haver com ortodontia. É óbvio que recusei de imediato. Depois conversei com minha irmã porque estava em dúvida se era um princípio ou uma lei. E também por achar haver no nome desse princípio algo a ver com bio (ela é bióloga). Depois destas tentativas consegui encontrar, pesquisando, a palavra recapitulação, eu dizia repetição antes, e com ela gênese. Procurava no sentido que tem na origem da escrita, nas crianças e supostamente na história. Foi quando me deparei pesquisando por gênese com a lembrança da palavra ôntico. Então procurei por princípio ontogenético, donde resultou a lei ontogenética ou biogenética. O recalque negava a ontogênese na linguagem. Substituiu por um princípio e não por lei. Em seu lugar (onto) veio epi, contradizendo a idéia de que a linguagem seria natural, mas aprendida por estágios. A raiz, por assim dizer, ‘genética’, manteve-se. O prefixo bio corrobora a questão por fazer referência à vida, associa-se ao natural. A tentativa de fazer derivar bio e epi como substitutos de onto quis convencer-me de que a linguagem não é relativa ao homem propriamente em sua origem, mas que teria uma razão natural, gênese natural, e como o princípio de Erickson, o que eu procurava era justamente a idéia de estágios, isto é, a própria recapitulação feita pela criança quando aprende a escrever, seria, em teoria, a recapitulação da história da escrita. Isto é, o que se recalca é a palavra e não o afeto. O afeto vemos estampado na paixão do uso do termo, logo não há nada recalcado aí senão há inconsciência da projeção do conteúdo.
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