Sobre a gratidão
Permitam-me, caros leitores, iniciar o texto de hoje com uma certa nostalgia; pois urge-me expressar a gratidão e a afeição que me invadem ao ler a carta que recebi em reação a esta coluna.
Não são exatamente muitas as lembranças que tenho da minha primeira série, aos seis anos de idade, no Colégio Santos Anjos. Eu era pequena, e ávida por aprender. Na minha memória dessa época, apenas um momento se mantém: quando a professora que me alfabetizou, me ensinou a ler e a escrever, Sônia Luíza Cabral, levou-me a visitar a Diretora em seu gabinete, porque ela desejava ver se eu realmente já havia aprendido a ler. Sentada diante dela, li em voz alta algumas páginas de uma história, sobre um pequeno cervo; e porque passei no teste, ganhei o livro de presente.
Silenciosa, em pé ao meu lado para que eu me sentisse segura, permaneceu o tempo todo a Professora Sônia. Não precisou falar por mim ou me incentivar com palavras, sua presença era suficiente. E foi essa a imagem que guardei dela até hoje; do zelo carinhoso e encorajador, que não precisa chamar à atenção para perceber-se presente, pois mesmo no silêncio revelavam-se a ligação e o apreço que ela havia, com dedicação, estabelecido entre nós.
Em todos os anos desde então, poucas vezes nos encontramos e conversamos. Aprendi muito mais, busquei lugares mais altos e experiências mais marcantes; essa imagem, porém, creio que nunca me deixará. Por essa experiência, e todas as outras que vivenciei como sua aluna, mesmo que delas não me lembre mais, sou grata, Professora Sônia. Quem saberia a importância dessa primeira vitória, e da sua afetuosa assistência? A senhora sabia. Para mim criança, saber ler era conquistar o mundo! E para minha professora, eu não era apenas mais um número nos índices de alfabetização; pois o professor trabalha e produz sem considerar produto a vida que lhe é confiada. Hoje eu sei. Obrigada por sabê-lo quando estive aos seus cuidados, obrigada por lembrar-se, obrigada por encorajar-me ainda hoje! É muito bom saber que a senhora ainda está presente, me acompanhando, e torcendo sempre.
Valho-me da gratidão à minha professora para estendê-la ao seu âmbito de uso na língua portuguesa, conforme análise do Professor Jean Lauand, da qual transcrevo alguns recortes. O filósofo apresenta os ensinamentos de S. Tomás de Aquino sobre essa importante dimensão da realidade humana: “A gratidão se compõe de diversos graus. O primeiro consiste em reconhecer (ut recognoscat) o benefício recebido; o segundo, em louvar e dar graças (ut gratias agat); o terceiro, em retribuir (ut retribuat) de acordo com suas possibilidades e segundo as circunstâncias mais oportunas de tempo e lugar” (II-II, 107, 2, c).
As diversas línguas recorrem a diferentes modos de agradecer. Tomando a expressão no primeiro nível apontado por S. Tomás de Aquino, ou nitidamente expressando o reconhecimento que se sente, temos, além do português, reconaissance, em francês, como sinônimo de gratidão. Como só está verdadeiramente agradecido quem pensa no favor que recebeu como tal, tothank(agradecer) e tothink(pensar), em inglês, são em sua origem a mesma palavra; tal como acontece em alemão, com danken(agradecer) e denken(pensar). Só é agradecido quem pensa e pondera a generosidade do seu benfeitor. Daí que S. Tomás afirma que ignorar, faltar com o reconhecimento, é a suprema ingratidão.
A expressão árabe de agradecimento shukran, shukranjazylan situa-se diretamente naquele segundo nível: o de louvor do benfeitor e do benefício recebido. Já a formulação latina de gratidão, gratias ago, que se projetou no italiano, no castelhano (grazie, gracias) e no francês (merci, mercê), comporta as dimensões de: 1) obter graça de alguém que nos faz um benefício; 2) indicação de algo gratuitamente dado, sem mérito por parte do beneficiado; e 3) a retribuição, “fazer graças”, por parte do beneficiado.
A formulação portuguesa “obrigado”, para Jean Lauand, é a única a situar-se claramente no mais profundo nível de gratidão de que fala S. Tomás de Aquino: o do vínculo (ob-ligatus), da obrigação, do dever de retribuir.
Agradecer, portanto, não é simplesmente ser gentil ou educado, mas reconhecer que se fez algo por você, entender que alguém disponibilizou um tempo para lhe dar atenção, quando muitas vezes você nem pediu. É enxergar o sentimento e não o interesse em primeiro lugar, permitir que uma palavra transmita a alegria que há em seu coração e o quanto um gesto, que pode ser considerado simples, teve valor para você.
Fonte: LAUAND, J. Antropologia e formas quotidianas: a filosofia de São Tomás de Aquino subjacente à nossa linguagem do dia-a-dia. Conferência. Barcelona: Universitat Autónoma de Barcelona, 1998.
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