Sobre acidentes, tecnologias e informações
Usina de Chernobyl, Ucrânia, 26 de abril de 1986. Há pouco mais de trinta anos, o mundo acordava assustado com um acontecimento ainda pouco divulgado pela rigidamente controlada imprensa soviética, mas que facilmente se podia antecipar seria o catalizador de transformações que mudariam para sempre o modo como a humanidade enxergava sua própria trajetória sobre o planeta Terra. A explosão de um reator nuclear de grande capacidade havia despejado na atmosfera da fria república ucraniana uma quantidade imensurável de material altamente radioativo provocando mortes, doenças e o estarrecedor contato com o fato (até então minimizado) de que nenhuma tecnologia humana é completamente imune a falhas.
Acreditava-se, então, que o intelecto humano já conhecera o maior desenvolvimento possível, permitindo a todos conhecer fatos antes compreensíveis apenas a alguns poucos iluminados preocupados demais com sua posição social para compartilhar seu conhecimento com os demais. Imagino que poucas vezes uma premissa terá sido destruída de forma tão aterradora. Após as tragédias presenciadas ao longo de duas guerras mundiais, e tendo convivido por quase vinte anos com o risco de uma guerra nuclear que poderia ser desencadeada a qualquer momento tanto por estadunidenses quanto por soviéticos, agora ficava claro a toda a humanidade que sua existência poderia ser posta em risco também por um acidente de maiores proporções. Subitamente redescobriu-se que erros podem ocorrer. Que a criatura mais perfeita da criação divina não era, afinal, tão perfeita assim. E o mundo nunca mais foi o mesmo.
As consequências deste acontecimento dramático são até hoje objeto de acaloradas discussões. Se hoje é quase certo que o acidente da Usina de Chernobyl acelerou sobremaneira o processo de derrocada do antigo império soviético, aumentando a contestação a um governo que já carregava consigo, por esta época, pouco mais do que um rascunho do poderio político e militar de que havia gozado nas décadas anteriores, ainda segue sendo difícil mensurar até que ponto o desenvolvimento da tecnologia nuclear foi ou não afetada por este acontecimento.
Isto porque, por um lado, os governos das maiores potências do planeta passaram a investir como nunca no quesito segurança, na busca desesperada pela conquista de uma segurança absoluta que, hoje sabe-se muito bem, não existe senão na cabeça dos responsáveis por pensar as grandes usinas modernas. Por outro lado, contudo, exatamente pela constatação irrefutável de que nenhum sistema jamais será imune a falhas de qualquer tipo, vários governos nacionais passaram a questionar seriamente a instalação de novas usinas em seus territórios, muitos deles cancelando completamente qualquer novo investimento em um modo de energia entendido como perigoso demais para receber qualquer incentivo. Criou-se deste modo um impasse difícil de ser resolvido, e os muito mais recentes problemas com a usina japonesa de Fukushima, provocados por um tsunami de proporções catastróficas, apenas serviram para tornar ainda mais complexo um debate de nível mundial cujos resultados são quase impossíveis de prever.
Em 1986 eu era apenas e tão somente uma criança. Não possuo, assim, qualquer lembrança dos noticiários da época. Mas já consigo me lembrar de alguma coisa referente ao acidente com césio 137 ocorrido em Goiânia, em 13 de setembro de 1987, considerado o maior acidente nuclear ocorrido fora de uma usina do mundo. Novamente falhas graves aliadas a uma negligência elevada a graus quase inimagináveis foi capaz de provocar a morte de pelo menos seis pessoas, e a contaminação de várias outras. Novamente, como no caso ucraniano, chama a atenção até hoje de quem se disponha a procurar no YouTube por vídeos antigos dos noticiários sobre a tragédia a falta de informações e o esforço governamental por esconder da população o que de fato estava acontecendo. Lembro claramente, apesar de minha tenra idade na ocasião, que ao mesmo tempo em que a contaminação vinha a público ocorria uma competição internacional de motos na capital goiana, com a presença de celebridades vindas de várias partes do mundo, e que somente após o fim deste evento as informações começaram a fluir em maior abundância, e as mortes ocorridas começaram a ser, enfim, noticiadas.
Trinta anos nos separam destes eventos funestos. Lembrei-me deles por conta da efeméride a pouco relembrada através de documentários veiculados em canais da televisão por assinatura, e por textos escritos em diversos idiomas em algumas das mais prestigiosas homepages da internet. São vários os ensinamentos que estas tragédias nos deixaram, muitos dos quais ainda não foram devidamente assimilados pela maioria das pessoas. Se é verdade que hoje se reconhece com maior facilidade as óbvias e inevitáveis limitações do ser humano em controlar a realidade que o cerca, e em projetar ambientes completamente livre de erros e falhas de qualquer espécie, vigora ainda o sentimento disseminado de que este tudo pode, e de que a natureza deve ser subjugada por sua força conquistadora. O resultado são as mudanças planetárias de larga escala que já tornam nossa vida mais imprevisível e perigosa, retirando da humanidade exatamente uma parcela daquele controle sobre o ambiente que durante várias décadas ela tão orgulhosamente defendeu possuir – falsamente, como Chernobyl nos mostrou.
Ao mesmo tempo em que se discute formas mais avançadas de geração de energia elétrica pela via nuclear, como uma estratégia de inserção de países em desenvolvimento no seleto grupo das “nações desenvolvidas” do globo, abandona-se completamente o desenvolvimento de tecnologias limpas e seguras como a das células fotovoltaicas para geração de energia a partir dos raios solares, as quais certamente seriam muito mais eficientes se recebessem sequer uma fração significativa dos recursos carreados anualmente para projetos e construção de usinas atômicas.
Ao mesmo tempo, e aqui volto novamente a nosso contexto atual – uma vez que a história só faz real sentido quando analisada à luz do tempo presente – não posso deixar de me lembrar da manipulação da informação que marcou a divulgação tanto do acidente de Chernobyl quanto do de Goiânia. Interesses obscuros e inacessíveis à maioria das pessoas simplesmente fizeram com que as notícias chegassem apenas parcialmente e com atraso aos meios de divulgação em massa. No final das contas, sabia-se que algo grandioso havia ocorrido em ambos os casos, embora não se soubesse exatamente o que e qual a real dimensão do problema. Isto porque a informação, ao fim e ao cabo, depende de quem a apura e de quem a veicula. Basta relembrarmos a brincadeira do “telefone-sem-fio”, bastante divertida e popular em meu tempo de criança (principalmente porque naquela época ainda não existiam celulares, o que tornava o próprio termo “telefone-sem-fio” algo em si só bastante interessante) para nos darmos conta do quão frágil é a verdade dos fatos quando manipulada com interesses escusos.
A imprensa, e me insiro neste termo como autor desta coluna que sou, não é, nunca foi e nunca será absolutamente imparcial. Não é possível abrir um jornal e esperar apenas opiniões isentas e absolutamente neutras, pelo simples fato de que a própria seleção do que será ou não noticiado já implica uma escolha impossível de ser feita sem um mínimo de critério e… interesse. O importante é que este esteja claro e acessível a todos, para que cada um possa melhor selecionar as informações que convém ou não levar em consideração dadas suas próprias opiniões e objetivos. Apenas assim poderemos pintar um quadro fidedigno da realidade que nos rodeia, e atuar de acordo com o mesmo. Seja este quadro caracterizado por um acidente nuclear, por uma crise política e econômica ou pelas informações que circulam em nosso bairro. Até a próxima!
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