Sobre História e História
Há um adágio popular muito conhecido que diz: “de médico e louco, todo mundo tem um pouco”. Trata-se de uma frase que se tornou famosa por expressar, com simplicidade, dois fatos empiricamente verificáveis em uma quantidade razoável de casos, ao menos. Um deles consiste em uma marca dos tempos modernos, o fato de que muitos de nós, se analisados com a proximidade e o cuidado suficientes, muito provavelmente seremos diagnosticados com algum tipo de distúrbio ou transtorno mental, em algum grau. O outro, joga luz sobre um comportamento muito comum, ainda que reprovável: o péssimo hábito que muitos tem de receitar remédios, tratamentos e terapias milagrosas para os mais diversos sintomas, ainda que não possuam a mais leve base teórica para sustentar tais prescrições. Se, como diz a frase, todos somos médicos e loucos, mais loucos são aqueles que aceitam e seguem as indicações de falsos médicos, muitas vezes pondo em risco a própria vida ou, o que é ainda mais grave, a de outros. Medicina é coisa séria, baseada em um corpo de conhecimento valioso, apenas a duras penas adquirido. Mas não constitui, em absoluto, a única área da ciência na qual muitos pensam sempre ter algo a dizer, ainda que tomados pela mais completa ignorância sobre o assunto.
De fato, penso ser possível transferir a mesma observação, sem muito receio de incorrer em erro, para a História. Afinal, em tempos recentes, até mesmo um ex-ministro da educação e um presidente da república resolveram oferecer suas contribuições desastrosas para essa área do conhecimento dotada de uma complexidade tão absoluta quanto desprezada pela imensa maioria das pessoas. Se o atendimento a conselhos de tios, amigos, colegas e vizinhos sobre assuntos relacionados a sintomas médicos constitui grave atentado à própria saúde, dar ouvidos a interpretações históricas formuladas por quem nunca investiu nem cinco minutos na leitura de livros sérios sobre o tema, constitui grave risco à convivência social, ao mesmo tempo em que oferece instrumentos interessantes para a compreensão desta mesma sociedade.
Existem, grosso modo, duas categorias de História, em larga medida diferentes uma da outra e, mesmo, incompatíveis. Uma é a “história cívica”. Trata-se, grosso modo, daquela que versa sobre heróis tão inatingíveis quanto inimitáveis, fatos e acontecimentos tão grandiosos quanto fantasiosos, exatamente aquela história retratada em hinos, bandeiras, monumentos e, até pouco tempo atrás, cartilhas escolares. Foi assim que minha geração aprendeu, por exemplo, que dom Pedro II foi um homem muito à frente do seu tempo, capaz de pensamentos de justiça e moralidade simplesmente inatingíveis para aqueles que conviviam com ele. Que tal imagem pareça completamente fora de lugar quando aplicada a alguém que governou um país escravista por quase meio século simplesmente não importa, pois o objetivo da história cívica é criar a narrativa de uma trajetória positiva, heroica e invejável compartilhada por todos os membros da sociedade. Não há, portanto, preocupação com a verdade, mas tão somente com a forja de uma identidade nacional. É assim que os bandeirantes, até pouco tempo atrás heróis icônicos da nação e de minha terra natal, São Paulo, foram por várias décadas apresentados como criaturas sobre-humanas capazes de desbravar matas, enfrentar perigos inenarráveis, derrotar inimigos e, ao final, voltar para casa com quilos e mais quilos de ouro que garantiriam a tranquilidade material de seus filhos. Que durante este processo tenham sido responsáveis pela escravização e assassinato de milhares de indígenas não tem a menor importância, já que, repito, o compromisso aqui não é com a verdade ou com a análise cuidada do processo histórico. Eles nos legaram o território nacional, o qual devemos amar, e isso basta.
Esta é a história popular, aquela defendida por todos aqueles que, sem ter lido um livro, garantem ter o direito e o conhecimento suficientes para discutir com quem quer que seja, afirmando, entre outras sandices, que a escravidão africana constituiu benefício para aqueles povos – lembram dessa? Trata-se, fundamentalmente, de uma história completamente alheia àquela realizada nas faculdades, preocupada unicamente com a compreensão dos fatos passados, de suas consequências para o mundo atual e com as lições que possam nos oferecer para o planejamento do futuro. Esta é a História acadêmica, e seu compromisso é com a busca da verdade histórica, sem qualquer preocupação com identidades, sentimentos, narrativas heroicas ou, mesmo, com o agrado a qualquer pessoa, grupo ou sociedade. É realizada, geralmente, por pessoas que não contam com muitos amigos e incapazes de atrair muitas simpatias, exatamente porque chatos o suficiente para reconhecer que mesmo os planos, sonhos, desejos e utopias mais disseminados podem ter origem em verdadeiros embustes históricos, e insensíveis o suficiente para apresentarem, sempre que necessário, objeções desagradáveis às narrativas mais queridas dos apreciadores da outra história, a cívica.
Neste exato momento ocorre, em terras da Europa e da América do Norte, um fato quepor enquanto permanece completamente inconcebível no Brasil. O acerto de contas entre a história cívica e a História acadêmica, provocado por algo inusitado. O fato de que a segunda é hoje, nestes países, tão conhecida e disseminada que se tornou tão popular quanto a primeira. É como se nas filas de banco as pessoas citassem Eric Hobsbawm, Sérgio Buarque de Holanda, Marcos Napolitano e Evaldo Cabral e Mello, ao invés das cretinices afirmadas por um político populista qualquer. Ou, então, como se as pessoas gastassem mais tempo devorando as linhas de um bom livro do que discutindo besteiras no Facebook ou no WhatsApp. Não que isso seja universal naquelas regiões. Mas é indiscutível que, naquelas sociedades, o nível de interesse pela História real, acadêmica, é muito maior do que pode ser verificado no Brasil mesmo entre pessoas com maior nível de formação.
Tal fato vem provocando um ato curioso: na esteira das muito bem-vindas manifestações antirracistas estadunidenses e europeias, ícones da história cívica daquelas nações passaram a ser questionados, descontruídos e renegados, e os monumentos e homenagens em sua honra estão sendo destruídos, retirados, revertidos. Nomes de ruas e praças estão sendo alterados, com possibilidade de alteração de designações, mesmo, de cidades. E, para espanto dos que assistem horrorizados a tais acontecimentos, sem que isso provoque um enfraquecimento da identidade nacional. Na verdade, o que se verifica é um fortalecimento do sentimento de pertença a uma sociedade que, capaz de acertar contas com o passado e buscar corrigir os erros cometidos, encontra-se em muito melhor situação para ser orgulhosamente assumida por seus constituintes, que passam a fazê-lo por opção, e não como resposta a meras obrigações legais. Que belo sentimento deve ser esse: o de efetivamente sentir-se parte de algo maior, o de identificar-se orgulhosamente com um grupo de pessoas que não são perfeitas nem heroicas, mas, reconhecendo isso, tornam-se capazes de atuar entusiasticamente para melhorar a si, e a sua comunidade. A vitória da história real sobre aquela que constrói mitos fantásticos é a vitória do patriotismo real sobre o patriotismo de bandeira. Da preocupação com pessoas reais sobre a preocupação com símbolos e instituições abstratas. Da real cidadania, em uma palavra, sobre a sempre mal explicada e justificada atuação egoísta dos “homens de bem”, preocupados com suas famílias e suas propriedades, na busca de vantagens e soluções para seus problemas individuais, enquanto a nação afunda na mais grave crise de sua trajetória recente. Lá, derrubam-se monumentos que não mais correspondem aos valores da sociedade. Aqui, nega-se o caráter estruturante da escravidão para a constituição da nacionalidade brasileira, e acusam-se os professores, todos, de serem comunistas. Resta, ao menos, o exemplo. Que ele possa, um dia, permitir o florescimento dos verdadeiros e positivos sentimentos cívicos também deste lado do Atlântico. Até a próxima!
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